Gente desocupada é uma tristeza mesmo. Embora
não seja esse o meu caso, pois sou ociólogo profissional, resolvi completar o
que havia desistido de fazer. No caso, a digitação de um texto do Ziraldo que
foi publicado no Pasquim no início da década de 1970. Agora a leitura ficou
sopinha. Mas se alguém te perguntar se deu pra ler, só não pode vacilar na
resposta e dizer -“Dei”.
Algumas palavras foram corrigidas pela nova
ortografia, mas as vírgulas foram mantidas em seus lugares originais. Além
disso, substituí o negrito de algumas palavras por itálico.
O Ziraldo escreveu que “sazão é estação do
ano, feminino. Mas, é de sazão que vem o verbo sazonar, amadurecer, ficar
pronto. A gente muda o gênero da palavra para o caso. Fica masculino”.
Como tive de reler tudo cuidadosamente,
imagino ter descoberto ainda que tardiamente a solução para esse conflito de
gênero abordado no texto. A solução Jotabê (brilhantíssima!)
para esse problema é substituir a palavra “Sazão” para “Zezão”. Macho
pra caralho!
E agora, sem gozação, totalmente digitado, o
texto muito bacana do genial Ziraldo.
Os Cem Anos de Solidão do
Garcia Marques são, de fato uma saga genial (de gênio mesmo), a mais imaginosa
coleção de histórias (ou estórias, arghhhh) que eu já li na minha vida, mas há
uma certa profundidade humana que o livro não alcança (sob este aspecto, por
exemplo, o coronel do Zé Cândido de Carvalho, aquele do lobisomem, vale por dez
coronéis, do Gabriel). O livro me possibilitou, porém, uma
descoberta fascinante. Se eu entendi bem, a sua tese do tempo
cíclico me deu uma dimensão da vida que eu não havia suspeitado ainda. Os
velhos de Macondo me deixaram arrepiado e isto é que é magnífico no livro do
colombiano: aquele: seus velhos continuam vivos por
inteiro, como de fato estão mais vivos do que quem viveu menos.
Não vi até agora o livro da Simone de
Beauvoir sobre a velhice mas estou de olho. Pelo que tenho lido por ai, ela
trata o problema, mais que tudo, sob seu aspecto social, levantando a questão
das relações do velho com o mundo. Meu caso aqui é outro.
Não deve ser mole ser velho e só. Se o que
carrega as nossas esperanças, as nossas vontades, nosso gozo
e aflição, nossa lágrima e nosso riso, nossa fé e decisão é o corpo da gente, a
velhice é uma sujeira. Cansa as nossas pernas, bambeia os joelhos, engrossa o
sangue, turva a nossa vista, bloqueia juntas e amolece o nosso paupérrimo
coração, justo quando o que se está precisando é de um corpo dez vezes mais
forte para carregar bem uma alma então cheia de vida, no sentido mais exato do
termo. Do ponto
de vista biológico não devia ser assim. Ainda bem que ao homem lhe
resta o Espírito e, no frigir ovos - nunca tão propriamente dito - é ele que
conta. Bernard Shaw, um velho macondiano, achava que a· adolescência deveria
ser dada aos velhos.
Mas, o que é o Velho? Em abstrato, é aquele
que tem o dobro da nossa idade. Quanto mais a gente vive,
mais, pra frente vai projetando a imagem do velho. Em termos concretos, porém,
o velho é aquele que começa a superar a idade média de vida da sua gente. É o
avô, o bisavô. É o aposentado, o que não consegue mais emprego, por causa da
idade.
Velho é acima de tudo uma expressão má.
Ninguém gosta de ser chamado assim. O que é um erro, um preconceito.
Velho é aquele que viveu
muito e
isto não é um defeito, é uma qualidade. Um prêmio. Cada conquista nos custa um
preço. O preço de ter vivido muito - essa conquista que, afinal de contas, é o ideal
de todo mundo - é este de ser chamado velho.
Se considerarmos que a vida é uma
dádiva - quem achar que não é, pode se retirar - temos
que concluir
que o Velho é muito melhor do que o Jovem, pois inegavelmente contém mais
vida.
E isto faz um sentido ainda mais absoluto se
se admitir que a Vida é este exato momento que se acabou de viver e mais o
anterior e o seguinte e o anterior ao anterior e o seguinte ao seguinte, a Vida
é o Tempo.
Em outras palavras, ao tomar consciência dessa
verdade, o homem deve julgar-se como se julga o vinho bom: quanto mais velho,
melhor. É o que eu chamo
ter a consistência do
vinho.
Ou, como inventaria o Décio Pignatari, ter a conscienstência do
vinho.
Quando eu era rapazinho, numa festa em casa
da namorada, a turma mandando a maior brasa no because
of you, o Billy Ekstine se acabando lindo na vitrola, a menina mais bonita da
festa suspirando no meu peito, negócio do lado direito, rum e Coca-Cola e o
primeiro maço de Hollywood custando a acabar dentro do bolso, eu tive momento
de espanto. Me ocorreu a terrível sensação de que a Vida não poderia ter mais
sentido daquele momento para a frente, que aquelas coisas que estavam
acontecendo em minha volta nunca deixariam de significar para mim, que não
poderia haver nada melhor, me deu uma de Peter Pan, eu não queria crescer. Os
pais das meninas, na
sala ao lado, às gargalhadas, de chopp na mão, de mulheres redondinhas e bem
fornidas conversando nos sofás, me pareceram um bando de mentirosos, rindo de
nada, não havia felicidade fora da sala onde o disco rodava.
Pois outro dia eu estava numa festa,
justamente na sala das gargalhadas - só que em vez de chopp era uísque e as
nossas mulheres não eram nem tão roliças nem tão fartas - e a festa na sala ao
lado, a mesma festa do Billy Ekstine de anos atrás, não tinha nenhum
significado para mim, eu estava num dia ótimo, pleno, tava na minha e não me
parecia possível haver um momento melhor fora do espaço que me cercava.
Um dos mistérios da Vida e do Tempo é este:
os estímulos
vitais tomam
sempre a configuração do
Tempo que os gera.
O que, em geral, se passa com o homem é que
chega um determinado momento em que ele distorce essa equação.
O medo do fim faz· com
que ele se agarre a um determinado estágio
de seu Tempo e a Vida vai passando (vejam que posso usar as duas expressões com
o mesmo sentido quase-sempre) e ele vai ficando
parado lá e
acontece o quê? O óbvio ululante: esclerosa a alma.
Só estes deveriam ser chamados de velhos, no
sentido mau em que a palavra· é habitualmente
usada.
O envelhecimento do corpo é inexorável. O Tempo atrita fisicamente e o
desgaste não pode
ser evitado. Mas eu já disse que o homem é, acima de tudo, o seu Espírito (!) e
este o Tempo não gasta. Isto é: não gasta se o Homem faz com que seu Espírito
corra junto com o Tempo. Se ele deixa este passar e para aquele,
o óbvio se repete: o Tempo vira rebolo, vira esmeril.
A vida é uma fonte; a mulher amada é um
sonho; o·homem é o lobo do homem; o tempo é dinheiro; o dinheiro é tudo, o
homem adora viver de metáforas.
Assim ele explica o inexplicável com exemplos
ao alcance de sua compreensão imediata.
À sua vida, por exemplo, o homem associa a
vida do fruto: o jovem é verde, o adulto é maduro.
Mas, depois de maduro, o que resta ao fruto?
Se o próprio homem concebe assim sua
existência, ele mesmo admite que nada resta ao velho senão o bolor.
Inegavelmente o fruto passa da madurez para a
decomposição, mas o fruto não tem alma.
O Velho conscienstente sabe
que é melhor e isto o faz viver mais. Quando eu digo isso, porém, preciso
deixar bem claro que o Velho-que-sabe-que-é-melhor é aquele que continua (olha
a metáfora!) subindo a escada e está - com todos e ao mesmo tempo - no mesmo
degrau, vendo mais longe, ainda que suas pernas o tenham deixado alguns degraus
mais abaixo. É aquele que sabe que contém mais
vida dentro de si e não deixa que ela se perca, o Tempo e a Vida seguros em
suas mãos de veias altas. Usando uma expressão meio gasta: é aquele que sabe envelhecer
com dignidade.
E é aqui que eu entro com a minha proposição.
Vamos fundar o Clube dos Sazões.
Explico tudo, explico tudo.
Primeiro vamos mudar os nomes comprometidos.
O verbo envelhecer e o
substantivo velho,
como já dissemos, se transformaram em expressões preconceituosas, pejorativas.
Velho, fica sendo, portanto, o vovozinho. (Ou todo o cara que ficou gasto por
dentro, agarrado a uma passada configuração do seu Tempo, para fingir-se
sobreviver, tenha cem ou quarenta e três anos).
Aceito para as minhas metáforas as
comparações da vida do fruto: verde continua sendo o jovem - como antes foi a
semente e como foi criança a flor-que-vai-ser-fruto - o adulto fica sendo o de
vez e
maduro, fica sendo o que até aqui se chamou de velho. Pois não parece evidente
que é este o homem pronto como pronto é o
fruto maduro?
Vamos em frente: o verbo amadurecer sai fora
por uma- questão de excesso de compromisso. Vamos inventar um verbo novo para o
sentido, um verbo lindo: sazonar.
Assim, ao invés de dizermos - aqui no caso,
pleonasticamente - que o cara envelheceu com dignidade, a gente passa
a dizer só que o cara sazonou.
Não é bacana? Sazonar - embora seja quase o
mesmo que amadurecer - nunca foi usado neste contexto, dá um ar de novo,
sensacional.
E, no lugar de chamarmos de velho ou de
ancião a um velho
bom, a um velho macho,·desses bacanas, atentos a tudo, concordes com o seu
Tempo, a gente chama o cara de sazão!
O nome é forte e vigoroso, pode inclusive,
mudar a nossa compreensão do velho. (sazão é estação do ano, feminino. mas, é
de sazão que vem o verbo sazonar, amadurecer, ficar pronto. A gente muda o
gênero da palavra para o caso. Fica masculino).
E tá fundado o Clube dos Sazões. Só entra
velho bacana, aqui chamado de velhos, pela última vez! Ainda que não vá ter
sede social nem campo de esporte - negócio meio gagá - o clube só vai ter
sócio-atleta.
No clube terão como função apenas - não
precisa mais - serem respeitados e·amados, antipieguisticamente por nós todos.
O patrono fica sendo, naturalmente, Bertrand
Russell, sócio remido. Outros europeus - Picasso vai desenhar o logotipo - e
americanos serão homenageados oportunamente.
Manteremos alguns preconceitos: não vai
poder, por exemplo, entrar menores de sessenta anos.
De sessenta a. setenta, os membros do clube
serão chamados de aspirantes,
ou lobinhos.
De setenta a oitenta, sócios-mirins.
Para ser sócio jubilado o atleta vai ter que
ter vivido muito mesmo, de oitenta pra cima.
Eu ia fazer uma lista, de brasileiros para inaugurar
o clube, mas mudei de ideia. Primeiro, não tem muita gente. Aliás, têm
pouquíssimos. Em compensação, se está faltando quantidade, esbanjam-se
qualidades, não é, Professor Alceu?
Telefonei ao Alvarus para saber a idade de
alguns e descobri que a ·turma tá toda na base do aspirante ainda.
O Drummond, por exemplo. Fui à Enciclopédia
pra ver a- idade dele. Vi. Sabem qual é? Não digo, não quero dizer. Eu bem que
desconfiava que ninguém poderia ser assim tão jovem.
O Di Cavalcanti eu não achei em casa. Ainda
não tinha chegado do Flag.
JK, o telefone dele ocupado o dia inteiro. Mário Pedrosa passando o verão em
Cabo Frio.
Me lembrei do Pixinguinha, da turma do samba,
do Bororó. Me lembrei do Dr. Herbert Moses, que, se não tivesse se aposentado,
tava ai, firme na luta contra a censura, ele que nunca deixou a bola cair. Me
lembrei desses, tudo aspirante, tudo mirim.
Se o leitor se lembrar de mais algum, a gente
manda ficha pra preencher. Por enquanto, aqui fica a nossa homenagem a esses
poucos, os melhores homens
deste país, nossos jovens sazões.
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