quarta-feira, 2 de março de 2016

ZIRALDO, SEU "O CLUBE DO SAZÃO" FOI DIGITADO!

Gente desocupada é uma tristeza mesmo. Embora não seja esse o meu caso, pois sou ociólogo profissional, resolvi completar o que havia desistido de fazer. No caso, a digitação de um texto do Ziraldo que foi publicado no Pasquim no início da década de 1970. Agora a leitura ficou sopinha. Mas se alguém te perguntar se deu pra ler, só não pode vacilar na resposta  e dizer -“Dei”.

Algumas palavras foram corrigidas pela nova ortografia, mas as vírgulas foram mantidas em seus lugares originais. Além disso, substituí o negrito de algumas palavras por itálico.

O Ziraldo escreveu que “sazão é estação do ano, feminino. Mas, é de sazão que vem o verbo sazonar, amadurecer, ficar pronto. A gente muda o gênero da palavra para o caso. Fica masculino”.

Como tive de reler tudo cuidadosamente, imagino ter descoberto ainda que tardiamente a solução para esse conflito de gênero abordado no texto. A solução Jotabê (brilhantíssima!) para esse problema é substituir a palavra “Sazão” para “Zezão”. Macho pra caralho!

E agora, sem gozação, totalmente digitado, o texto muito bacana do genial Ziraldo.



Os Cem Anos de Solidão do Garcia Marques são, de fato uma saga genial (de gênio mesmo), a mais imaginosa coleção de histórias (ou estórias, arghhhh) que eu já li na minha vida, mas há uma certa profundidade humana que o livro não alcança (sob este aspecto, por exemplo, o coronel do Zé Cândido de Carvalho, aquele do lobisomem, vale por dez coronéis, do Gabriel). O livro me possibilitou, porém, uma descoberta fascinante. Se eu entendi bem, a sua tese do tempo cíclico me deu uma dimensão da vida que eu não havia suspeitado ainda. Os velhos de Macondo me deixaram arrepiado e isto é que é magnífico no livro do colombiano: aquele: seus velhos continuam vivos por inteiro, como de fato estão mais vivos do que quem viveu menos.
Não vi até agora o livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice mas estou de olho. Pelo que tenho lido por ai, ela trata o problema, mais que tudo, sob seu aspecto social, levantando a questão das relações do velho com o mundo. Meu caso aqui é outro.
Não deve ser mole ser velho e só. Se o que carrega as nossas esperanças, as nossas vontades, nosso gozo e aflição, nossa lágrima e nosso riso, nossa fé e decisão é o corpo da gente, a velhice é uma sujeira. Cansa as nossas pernas, bambeia os joelhos, engrossa o sangue, turva a nossa vista, bloqueia juntas e amolece o nosso paupérrimo coração, justo quando o que se está precisando é de um corpo dez vezes mais forte para carregar bem uma alma então cheia de vida, no sentido mais exato do termo. Do ponto de vista biológico não devia ser assim. Ainda bem que ao homem lhe resta o Espírito e, no frigir ovos - nunca tão propriamente dito - é ele que conta. Bernard Shaw, um velho macondiano, achava que a· adolescência deveria ser dada aos velhos.
Mas, o que é o Velho? Em abstrato, é aquele que tem o dobro da nossa idade. Quanto mais a gente vive, mais, pra frente vai projetando a imagem do velho. Em termos concretos, porém, o velho é aquele que começa a superar a idade média de vida da sua gente. É o avô, o bisavô. É o aposentado, o que não consegue mais emprego, por causa da idade.
Velho é acima de tudo uma expressão má. Ninguém gosta de ser chamado assim. O que é um erro, um preconceito.
Velho é aquele que viveu muito e isto não é um defeito, é uma qualidade. Um prêmio. Cada conquista nos custa um preço. O preço de ter vivido muito - essa conquista que, afinal de contas, é o ideal de todo mundo - é este de ser chamado velho.
Se considerarmos que a vida é uma dádiva - quem achar que não é, pode se retirar - temos que concluir que o Velho é muito melhor do que o Jovem, pois inegavelmente contém mais vida.
E isto faz um sentido ainda mais absoluto se se admitir que a Vida é este exato momento que se acabou de viver e mais o anterior e o seguinte e o anterior ao anterior e o seguinte ao seguinte, a Vida é o Tempo.
Em outras palavras, ao tomar consciência dessa verdade, o homem deve julgar-se como se julga o vinho bom: quanto mais velho, melhor. É o que eu chamo ter a consistência do vinho.
Ou, como inventaria o Décio Pignatari, ter a conscienstência do vinho.
Quando eu era rapazinho, numa festa em casa da namorada, a turma mandando a maior brasa no because of you, o Billy Ekstine se acabando lindo na vitrola, a menina mais bonita da festa suspirando no meu peito, negócio do lado direito, rum e Coca-Cola e o primeiro maço de Hollywood custando a acabar dentro do bolso, eu tive momento de espanto. Me ocorreu a terrível sensação de que a Vida não poderia ter mais sentido daquele momento para a frente, que aquelas coisas que estavam acontecendo em minha volta nunca deixariam de significar para mim, que não poderia haver nada melhor, me deu uma de Peter Pan, eu não queria crescer. Os pais das meninas, na sala ao lado, às gargalhadas, de chopp na mão, de mulheres redondinhas e bem fornidas conversando nos sofás, me pareceram um bando de mentirosos, rindo de nada, não havia felicidade fora da sala onde o disco rodava.
Pois outro dia eu estava numa festa, justamente na sala das gargalhadas - só que em vez de chopp era uísque e as nossas mulheres não eram nem tão roliças nem tão fartas - e a festa na sala ao lado, a mesma festa do Billy Ekstine de anos atrás, não tinha nenhum significado para mim, eu estava num dia ótimo, pleno, tava na minha e não me parecia possível haver um momento melhor fora do espaço que me cercava.
Um dos mistérios da Vida e do Tempo é este: os estímulos vitais tomam sempre a configuração do Tempo que os gera.
O que, em geral, se passa com o homem é que chega um determinado momento em que ele distorce essa equação.
O medo do fim faz· com que ele se agarre a um determinado estágio de seu Tempo e a Vida vai passando (vejam que posso usar as duas expressões com o mesmo sentido quase-sempre) e ele vai ficando parado  e acontece o quê? O óbvio ululante: esclerosa a alma.
Só estes deveriam ser chamados de velhos, no sentido mau em que a palavra· é habitualmente usada.
O envelhecimento do corpo é inexorável. O Tempo atrita fisicamente e o desgaste não pode ser evitado. Mas eu já disse que o homem é, acima de tudo, o seu Espírito (!) e este o Tempo não gasta. Isto é: não gasta se o Homem faz com que seu Espírito corra junto com o Tempo. Se ele deixa este passar e para aquele, o óbvio se repete: o Tempo vira rebolo, vira esmeril.
A vida é uma fonte; a mulher amada é um sonho; o·homem é o lobo do homem; o tempo é dinheiro; o dinheiro é tudo, o homem adora viver de metáforas.
Assim ele explica o inexplicável com exemplos ao alcance de sua compreensão imediata.
À sua vida, por exemplo, o homem associa a vida do fruto: o jovem é verde, o adulto é maduro.
Mas, depois de maduro, o que resta ao fruto?
Se o próprio homem concebe assim sua existência, ele mesmo admite que nada resta ao velho senão o bolor.
Inegavelmente o fruto passa da madurez para a decomposição, mas o fruto não tem alma.
O Velho conscienstente sabe que é melhor e isto o faz viver mais. Quando eu digo isso, porém, preciso deixar bem claro que o Velho-que-sabe-que-é-melhor é aquele que continua (olha a metáfora!) subindo a escada e está - com todos e ao mesmo tempo - no mesmo degrau, vendo mais longe, ainda que suas pernas o tenham deixado alguns degraus mais abaixo. É aquele que sabe que contém mais vida dentro de si e não deixa que ela se perca, o Tempo e a Vida seguros em suas mãos de veias altas. Usando uma expressão meio gasta: é aquele que sabe envelhecer com dignidade.
E é aqui que eu entro com a minha proposição. Vamos fundar o Clube dos Sazões.
Explico tudo, explico tudo.
Primeiro vamos mudar os nomes comprometidos.
O verbo envelhecer e o substantivo velho, como já dissemos, se transformaram em expressões preconceituosas, pejorativas. Velho, fica sendo, portanto, o vovozinho. (Ou todo o cara que ficou gasto por dentro, agarrado a uma passada configuração do seu Tempo, para fingir-se sobreviver, tenha cem ou quarenta e três anos).
Aceito para as minhas metáforas as comparações da vida do fruto: verde continua sendo o jovem - como antes foi a semente e como foi criança a flor-que-vai-ser-fruto - o adulto fica sendo o de vez e maduro, fica sendo o que até aqui se chamou de velho. Pois não parece evidente que é este o homem pronto como pronto é o fruto maduro?
Vamos em frente: o verbo amadurecer sai fora por uma- questão de excesso de compromisso. Vamos inventar um verbo novo para o sentido, um verbo lindo: sazonar.
Assim, ao invés de dizermos - aqui no caso, pleonasticamente - que o cara envelheceu com dignidade, a gente passa a dizer só que o cara sazonou.
Não é bacana? Sazonar - embora seja quase o mesmo que amadurecer - nunca foi usado neste contexto, dá um ar de novo, sensacional.
E, no lugar de chamarmos de velho ou de ancião a um velho bom, a um velho macho,·desses bacanas, atentos a tudo, concordes com o seu Tempo, a gente chama o cara de sazão!
O nome é forte e vigoroso, pode inclusive, mudar a nossa compreensão do velho. (sazão é estação do ano, feminino. mas, é de sazão que vem o verbo sazonar, amadurecer, ficar pronto. A gente muda o gênero da palavra para o caso. Fica masculino).
E tá fundado o Clube dos Sazões. Só entra velho bacana, aqui chamado de velhos, pela última vez! Ainda que não vá ter sede social nem campo de esporte - negócio meio gagá - o clube só vai ter sócio-atleta.
No clube terão como função apenas - não precisa mais - serem respeitados e·amados, antipieguisticamente por nós todos.
O patrono fica sendo, naturalmente, Bertrand Russell, sócio remido. Outros europeus - Picasso vai desenhar o logotipo - e americanos serão homenageados oportunamente.
Manteremos alguns preconceitos: não vai poder, por exemplo, entrar menores de sessenta anos.
De sessenta a. setenta, os membros do clube serão chamados de aspirantes, ou lobinhos. De setenta a oitenta, sócios-mirins.
Para ser sócio jubilado o atleta vai ter que ter vivido muito mesmo, de oitenta pra cima.
Eu ia fazer uma lista, de brasileiros para inaugurar o clube, mas mudei de ideia. Primeiro, não tem muita gente. Aliás, têm pouquíssimos. Em compensação, se está faltando quantidade, esbanjam-se qualidades, não é, Professor Alceu?
Telefonei ao Alvarus para saber a idade de alguns e descobri que a ·turma tá toda na base do aspirante ainda.
O Drummond, por exemplo. Fui à Enciclopédia pra ver a- idade dele. Vi. Sabem qual é? Não digo, não quero dizer. Eu bem que desconfiava que ninguém poderia ser assim tão jovem.
O Di Cavalcanti eu não achei em casa. Ainda não tinha chegado do Flag. JK, o telefone dele ocupado o dia inteiro. Mário Pedrosa passando o verão em Cabo Frio.
Me lembrei do Pixinguinha, da turma do samba, do Bororó. Me lembrei do Dr. Herbert Moses, que, se não tivesse se aposentado, tava ai, firme na luta contra a censura, ele que nunca deixou a bola cair. Me lembrei desses, tudo aspirante, tudo mirim.

Se o leitor se lembrar de mais algum, a gente manda ficha pra preencher. Por enquanto, aqui fica a nossa homenagem a esses poucos, os melhores homens deste país, nossos jovens sazões.


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