quinta-feira, 1 de agosto de 2024

UMA CRÔNICA DE ARIANO SUASSUNA

 
Há muitos anos li a frase “Se Deus não existe, tudo é permitido", que acreditei ter sido dita pelo escritor francês André Maulraux. Outro dia, conversando com um de meus filhos e sua esposa sobre religião, Bíblia e minha condição atual de “ateu-católico”, lembrei-me dessa frase.
 
Depois que esse casal querido voltou para a cidade onde moram atualmente - e por eu estar interessado em escrever um texto fazendo elucubrações sobre religião, busquei a frase na internet e descobri que seu autor foi Dostoiévski, que a colocou na boca de um dos personagens do livro “Os irmãos Karamazov”.
 
Continuei tentando achar alguma frase parecida que estivesse vinculada ao escritor francês. Não achei, mas, em compensação, encontrei uma crônica do Ariano Suassuna publicada em 1999 na Folha de São Paulo, na coluna “Opinião”. No pé dessa crônica há uma informação preciosa: “Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna”. Pelo tema nela abordado e por estar acontecendo uma espécie de Semana Suassuna ou “Suassemana” no Blogson, resolvi transcrevê-la. Lêaí.
 
Dostoiévski e o Mal
 
Como acontece também com o feio, o mal é uma das faces da desordem do mundo e da vida. Ambos são privações, são chagas do ser. Isto não importa em minimizar a importância, a poderosa presença do mal e do feio no universo da realidade e, consequentemente, no da arte. As pessoas que julgam antiquada qualquer referência à moral, normalmente se envergonham de usar os critérios de bem e mal em qualquer julgamento, no estético em particular. Na minha época de juventude passei, como todo mundo, por uma fase em que julguei ter me desvencilhado de Deus e dos conceitos de bem e mal. Até o dia em que, lendo Dostoievski, encontrei uma frase de Ivan Karamazov, que dizia: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Descobri, na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada um.
 
Entretanto, como tudo o que o personagem dostoievskiano dizia, a frase de Ivan não continha nem uma afirmação nem uma negação: lançava somente uma dúvida; uma ambígua dúvida da qual Sartre viria a fugir, afirmando: "Deus não existe, e, portanto, tudo é permitido". Eu, porém, apesar da minha extrema juventude, tirei da frase de Ivan a consequência contrária: "Vejo que nem tudo é permitido; então, Deus existe". E, daí por diante, procurei ajustar minha vida e minha arte pela convicção a que chegara.
 
É por isso que sempre considerei irresponsáveis e mal formulados tanto o princípio amoral estabelecido por Sartre quanto o lema leviano e tolo que os tropicalistas herdaram do movimento parisiense de 68: "É proibido proibir". E certa vez, em debate realizado no Recife, indaguei de um seguidor do lema, em que se fundamentava tal "proibição de proibir". Ele respondeu que era "numa ética libertária do prazer".
 
Aí, coloquei, para ele, a seguinte hipótese: "Digamos, então, que um sujeito saia por aí atirando em travestis e homossexuais, como tem acontecido. Se ele alegar que age assim por sentir prazer na prática de tal crime, deve lhe ser permitido continuar, para não ferir a norma de que é proibido proibir? Ou é melhor chegar à conclusão de que, pelo contrário, existem casos em que é permitido, e até obrigatório, proibir?"
 
E, como não obtive resposta satisfatória, cheguei mais uma vez à conclusão de que Hegel tinha razão ao considerar a arte, a religião e a filosofia como etapas no caminho do ser humano em direção a Deus, fundamento de qualquer norma moral que, por não depender do arbítrio individual, não se veja obrigada a considerar legítima até a realidade monstruosa do crime.

2 comentários:

  1. Muito boa essa postagem. Li Os Irmãos Karamazov há uns anos mas já estou planejando ler outra vez, é um romance estupendo. Ainda mais que adquiri uma nova edição muito bonita, capa dura, do clube dos clássicos.
    A frase é ótima: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Ou também, se não há uma autoridade ética que dica o que é bem e o que é mal, tudo é permitido. O desbunde do "é proibido proibir" é muito legalzinho, libertário mas impraticável. Mesmo porque a frase é em si, redundante, já que está proibindo o proibir. Ou seja, há uma ética moral aí. O proibido se faz presente. Se tirarmos Deus da questão, o padrão ético deve ser a vida. Tudo o que atentar contra a vida deve ser proibido. O categórico universal de Kant também parece bom mas na minha opinião é relativista mesmo querendo ser universal. Agir da forma que eu gostaria que todos agissem faz de cada sujeito um padrão já que as pessoas agem diferente em situações diferentes. Bem, isso se eu entendi Kant porque nem mesmo um professor de filosofia que eu tive dizia que entendia.

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