Sabe o que a música “A volta do boêmio” e a palavra “heterossexual”
têm a ver com a formação da língua portuguesa? Para acabar logo com o suspense
(inexistente), direi “Tudo!” Mas
antes, vou dar um passeio cultural pelas minhas lembranças cada vez mais
frágeis.
Quando eu me preparava para enfrentar o
primeiro vestibular unificado da UFMG, tive de estudar oito matérias, cinco
delas totalmente desnecessárias ao curso de engenharia civil que tinha
escolhido fazer (má escolha!). Eu me dedicava a encarar com afinco e seriedade
todas as oito, mas uma das cinco inúteis me atraiu mais: Português.
Não me lembro de quase nada do conhecimento
que adquiri – e o que ainda me lembro, estou perdendo (velhice, sabe como é?).
Mas uma das partes que mais gostei de estudar, pois era pura diversão para mim,
tratava da história da língua, da formação da nossa “última flor do Lácio, inculta e bela”.
Hoje, talvez, nem seja mais ensinada essa
parte fascinante da nossa língua e, para falar a verdade, nem sei se estudei
isso no ginasial ou colegial. Mas, para o exame vestibular, eu estudei.
Lembro-me de ter aprendido que as línguas
românicas teriam sido formadas a partir de uma amálgama do latim falado pelos
soldados, camponeses e funcionários romanos com as línguas bárbaras faladas nos
territórios conquistados pelos exércitos de Roma. Essa mistureba teria
resultado nas línguas neolatinas de hoje.
Mas que ninguém pense que esse latim era o
latim clássico cheio de regras e utilizado pela elite. Nada de “Quo usque tandem abutere...", elegante e famosa frase dita por Cícero. A coisa talvez
fosse mais parecida com esta sentença judicial: “Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus
capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote”.
Em outras palavras, o português e as outras
línguas românicas não surgiram do latim clássico, surgiram da língua utilizada
pela ralé, pelo populacho, pela escória. Expressões latinas tais como "sermo vulgaris", "sermo
castrensis" e coisas assim ressurgem em minha mente, passados mais de
cinquenta anos. E ressurgem porque eu realmente gostava de ler (diferente de
“estudar”) os livros e apostilas que falavam sobre isso.
Da mesma forma, sentia-me atraído pelas quase
indecifráveis “canções de amigo” e “canções de amor”, escritas em
galaico-português. Nunca consegui esquecer este verso: “ai, mia senhor, assi moir'eu!”. Essa tralha toda é que me atraía e
servia inclusive de leitura de banheiro. Lembro-me também de uma crônica mais
recente que falava de um enorme alão ou alano (raça de cães que existiu em
Portugal). Creio que esse cão tinha alguma coisa de demoníaco, mas não me
lembro de mais nada. Teria essa história inspirado a criação do “Cão dos
Baskervilles”? Pergunta inútil, obviamente.
Mas não é minha intenção exibir uma cultura
que nunca tive. Mesmo que tenha sido prazeroso lembrar de tudo isso e do tanto
que estudei, o que me levou a querer escrever este post foi refletir sobre o
dinamismo da língua, que vai se transformando sem parar graças à absorção de
palavras de outras línguas, regionalismos e gírias.
Tive um colega nascido em Angola que em
nossas conversas utilizou duas palavras de que nunca tinha ouvido falar:
“cubata” e “machimbombo”, respectivamente choupana ou casebre e ônibus. Imagino
que foi assim, por exemplo, que o português foi se afastando do galego, sua
língua irmã.
Mas a língua também se modifica pela
pronúncia errada de palavras e expressões. O primeiro verso da música "A volta do boêmio" traz a
frase "Boêmia, aqui me tens de
regresso". Na primeira gravação feita por Nelson Gonçalves, intérprete
que a gravou e popularizou, ele cantava corretamente o verso. Com o passar do
tempo, entretanto, transformou a palavra em paroxítona ao cantar "Boemia, aqui me tens de regresso".
Hoje, se alguém cantar “Boêmia” como proparoxítona” talvez seja até vaiado e
chamado de burro.
Heterossexual, a outra palavra citada no
início, também é vítima de pronúncia errada. “Heterossexual” é paroxítona
(hetérossexual), mas muita gente boa acredita que é proparoxítona
“héterossexual”).
Depois desse exibicionismo todo, dessa conversa fiada, dessa demonstração de cultura inútil
descontrolada, só me resta parafrasear a música do Gonzaguinha ao dizer que a
língua portuguesa “é bonita, é bonita e é
bonita”. Fui.
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