terça-feira, 6 de agosto de 2024

MAIS UM POUCO DE MANOEL DE BARROS

 
Sou um ignorante confesso. Por ser assim, confesso também que até há pouquíssimo tempo nunca tinha ouvido falar de Manoel de Barros. E hoje conheço pouquíssimo de seus poemas desconcertantes. Mas o que já li teve um efeito libertador, pois descobri que a poesia está guardada nas palavras e nas frases e versos por elas formados – mesmo que não obedeçam a nenhuma métrica ou rima.
 
Mas como é difícil encontrar na internet seus poemas tal como foram escritos e publicados! Um exemplo disso é o poema publicado no post anterior com o título “Poema”. Descobri que talvez – e eu repito “talvez” – seu título seja  “Tratado geral das grandezas do ínfimo”. Será? Talvez fosse mais recomendável comprar seus livros, não é mesmo? Pouco me importa, pois a magia está nos versos desse mato-grossense falecido em 2014. Por isso, mais um pouco de Manoel de Barros.
 
O Apanhador De Desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
 

Retrato Do Artista Quando Coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
 

O Fazedor De Amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
 

Prefácio
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
 

Os Deslimites Da Palavra
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
 

O Menino Que Carregava Água Na Peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

 

2 comentários:

  1. Senhor, talvez goste dessa paródia sobre um poema de Drummond
    https://www.revistabula.com/56072-jair/

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    1. Muito boa! Em plena epidemia de Covid, fiz uma paródia dedicada àquele senhor, em cima da fabulosa letra da música Cajuína composta por Caetano Veloso. Por provavelmente desconhecê-la, resolvi fazer sua ressurreição nesta resposta. Lêaí:

      CLOROQUINA
      Existirmos: a que será que se destina?
      Só sei de lágrimas a embaçar minha retina
      Ao descobrir que uma coisa pequenina
      Transforma a vida de alguém em triste sina

      O presidente fica puto e se amofina
      Se alguém critica sua amada cloroquina
      Tampouco curva-se ao que diz a medicina
      E manda a Esquerda ir tomar na tubaína

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4