Escrito em 27/08
Quando eu ainda era um working class hero (talvez nem tão hero nem tão worker
assim, mas tudo bem), eu achava que um profissional deveria ter habilidades
especiais além da necessária e esperada competência em sua área, caso quisesse
encantar e surpreender clientes, superiores e colegas. Essas habilidades seriam
fluência em inglês, desinibição e boa capacidade para falar em público e...
saber tocar (bem) um instrumento musical. Se fosse piano, melhor ainda.
Essas habilidades extracurriculares teriam
funções e visibilidade distintas. Fluência em inglês seria uma carta na manga
em reuniões com estrangeiros, especialmente quando falassem entre si sem saber
que você estava entendendo o que diziam. A capacidade de falar em público sem
gaguejar e tremer seria super bem avaliada nessas reuniões gerais que acontecem
em auditórios. Quanto mais público, melhor. A terceira habilidade seria a
cereja do bolo nas festas de congraçamento de final de ano. Ficava imaginando o
pessoal conversando, interagindo e o sujeito aproximar-se de um piano (tinha que
ter um piano!), sentar-se em frente a ele e começar a tocar “Lígia” ou um standard americano da década de trinta. O efeito disso curaria
qualquer ressaca e atrairia todo tipo de olhares e pensamentos sobre ele.
Devo dizer que essa era minha fantasia,
irrealizada fantasia, pois nunca deixei de ser monoglota, nunca fui exatamente
um primor de eloquência e o único instrumento que toco é violão. E tocava mal
(agora, pior ainda). Além do mais, a menos que você seja um Yamandu Costa, não
há o menor charme em espancar um violão para pessoas que te pedirão para tocar
alguma música sertaneja que você odeia (eu odeio todas).
Não sei se este início ficou divertido, mas
fantasias profissionais não são o tema deste post. O que interessa é o fato
indesculpável de eu não saber falar inglês, coisa quase tão banal hoje quanto prisão
de governador do Rio de Janeiro.
Mesmo sem saber falar inglês, tenho a
sensação de que algumas expressões idiomáticas da língua de Shakespeare e
Donald Trump podem ter sido equivocadamente traduzidas ao pé da letra, gerando assim expressões
bizarras em português. “Politicamente
correto” é um bom exemplo do que acabei de dizer e até mereceu um post
neste desclassificado blog.
Mas descobri outra ainda mais surpreendente
ao acessar hoje o site BBC News Brasil. Esse site tem a vantagem de ser um
híbrido do portal G1 com a revista Super Interessante, pois traz notícias
do momento atual misturadas com artigos sobre dinossauros ou de como se contava
na Idade Média até 9.999 usando apenas os dedos das mãos, como se fosse um braille aritmético medieval.
Pois bem, encontrei nesse site um longo e
interessante artigo sobre a obsessão do nosso presidente em defender a bendita
cloroquina, quando cientistas do mundo todo criticam seu uso - por ineficaz e
perigoso - no tratamento da Covid. Mas o que chamou
minha atenção foi o uso da expressão "evidência
anedótica" ao longo do texto, como neste trecho:
João
estava com dor de cabeça. João tomou suco de laranja. A dor de cabeça de João
passou. Podemos afirmar que a dor de cabeça de João passou porque ele
tomou suco de laranja? A resposta é não. Dizer que sim é criar uma falsa
correlação de causa e efeito. Pois alguém dizer que tomou cloroquina e, por
causa disso, se curou da covid-19, como faz o presidente Jair Bolsonaro, é
exatamente o mesmo.
Isso é
o que se chama de "evidência anedótica", informal, sem valor
científico. E o erro de lógica usado para se chegar nessa "evidência"
é uma falácia lógica, chamado também de correlação coincidente ou, em
latim, post hoc ergo propter hoc ("depois disso, logo, causado
por isso"), explica o cientista David Grimes, autor do livro The
Irrational Ape, sobre desinformação relacionada à ciência.
Essa
falácia lógica é construída a partir da ideia de que dois eventos que acontecem
em uma sequência cronológica estão ligados por meio de uma relação de causa e
efeito. Outros exemplos: "Eu espirrei e, segundos depois, a luz
caiu". A luz caiu por que eu espirrei? "Hoje de manhã nós dançamos.
Mais tarde, choveu." Choveu porque dançamos?
Mesmo que longo, o texto merece ser lido na
íntegra. O link do artigo é este:
Mas voltemos à expressão "evidência
anedótica" que tanta surpresa me causou. Comecei a fuçar dicionários e
só encontrava "piada”, “chiste” ou
“facécia" como sinônimo de "anedota". Joguei a expressão
bizarra no Google Translator e pesquisei sua tradução para o inglês (anecdotal evidence). Aí a coisa começou
a melhorar, pois encontrei este texto na https://en.wikipedia.org/
Anecdotal
evidence is evidence from anecdotes: evidence collected in
a casual or informal manner and relying heavily or entirely on personal
testimony.
The
term is sometimes used in a legal context to describe certain kinds
of testimony which are uncorroborated by objective, independent
evidence such as notarized documentation, photographs, audio-visual recordings,
etc.
When
used in advertising or promotion of a product, service, or idea,
anecdotal reports are often called a testimonial, which are highly
regulated or banned in some jurisdictions.
When
compared to other types of evidence, anecdotal evidence is generally regarded
as limited in value due to a number of potential weaknesses, but may be
considered within the scope of scientific method as some anecdotal
evidence can be both empirical and verifiable, e.g. in the use of case
studies in medicine. Other anecdotal evidence, however, does not qualify
as scientific evidence, because its nature prevents it from being investigated
by the scientific method. Where only one or a few anecdotes are presented,
there is a larger chance that they may be unreliable due
to cherry-picked or otherwise non-representative samples of
typical cases. Similarly, psychologists have found that due to cognitive
bias people are more likely to remember notable or unusual examples rather
than typical examples. Thus, even when accurate, anecdotal evidence is not
necessarily representative of a typical experience. Accurate determination of
whether an anecdote is typical requires statistical evidence. Misuse
of anecdotal evidence is an informal fallacy and is sometimes
referred to as the "person who" fallacy ("I know a person
who..."; "I know of a case where..." etc.) which places undue
weight on experiences of close peers which may not be typical.
In all
forms of anecdotal evidence its reliability by objective independent assessment
may be in doubt. This is a consequence of the informal way the information is
gathered, documented, presented, or any combination of the three. The term is
often used to describe evidence for which there is an absence of documentation,
leaving verification dependent on the credibility of the party presenting the
evidence.
Como o texto é meio chato, optei por não publicar a
tradução feita pelo Google Translator. Quem quiser, que o faça. Mas depois de sua leitura, vi que minha suspeita tinha fundamento, ou seja, "anedota" em inglês poderia ter mais significados que em português. Por isso, ao buscar na internet o significado de "anecdote", encontrei o texto a seguir (depois de traduzido do inglês para o português)
Ocasionalmente humorísticas, as anedotas diferem das piadas porque seu objetivo principal não é simplesmente provocar risos, mas revelar uma verdade mais geral do que o próprio conto breve. As anedotas podem ser reais ou fictícias".
Ocasionalmente humorísticas, as anedotas diferem das piadas porque seu objetivo principal não é simplesmente provocar risos, mas revelar uma verdade mais geral do que o próprio conto breve. As anedotas podem ser reais ou fictícias".
Para fechar este texto "rapsódico" (mais um), posso dizer que "evidência anedótica" é uma tradução meionascoxal para "anecdotal evidence". O mais correto seria dizer evidência "falaciosa" ou "equivocada" ou "sofismática". mas nunca "jocosa" ou "engraçada", nunca uma "piada".
Pensando bem, no caso do presidente até poderia ser mesmo uma evidência jocosa, pois seu comportamento detestável, condenável, sua visão machista, radical e preconceituosa nunca passaram de piadas de mau gosto, de péssimo gosto.
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