domingo, 22 de fevereiro de 2015

LITERAL

Quando eu ainda era pré-adolescente, xingar alguém de filho da puta durante uma discussão era a melhor forma de começar uma briga de porrada. O motivo ficava explícito na reação imediata – “minha mãe não é puta!”. E o pau comia. O tempo passou e ser chamado de filho da puta virou também um grande elogio, ou melhor, um puta elogio: – “aquele sujeito é filho da puta de competente!

Então, para quem não é bitolado ou fundamentalista, ouvir e falar coisas contrárias à sua crença não causa nenhum desconforto (a mim, pelo menos, não causa). Estou dizendo isso por conta das inúmeras vezes que fiz ou ri de piadas que ironizam o catolicismo (sou católico) e outras religiões, pelo simples fato de saber que quando faço isso não estou discutindo a essência daquilo em que creio.

Na década de 1990, trabalhei na mesma seção de um evangélico convicto, que estudava para ser pastor (batista, mais precisamente).  Era um sujeito grandão, meio simplório, mas muito simpático e que gostava de conversar comigo. Já comentei que falar de religião comigo é o mesmo que oferecer cachaça para alcoólatra  eu não resisto. E o papo rolava solto.

Pois bem, em uma dessas conversas fiquei sabendo que ele era um ex-católico, que era criacionista e que tinha calculado por conta própria a idade do mundo. Segundo ele, a Bíblia fala que a Terra tem doze mil e não sei quantos anos, mas isso está errado. Segundo meus cálculos, o mundo foi criado há dez mil e bolinha”. Essa imprecisão é minha, pois não me lembro dos números exatos. Ele não, ele “sabia” o número “exato”, tipo “10.384” anos.

Eu ficava fascinado com aquela visão simplista da vida e sempre o cutucava com questões a que ele respondia com sorrisos. Um dia perguntei a ele se tinha filhos. Diante da afirmativa, perguntei se eram crianças e ele confirmou. Aí saiu essa “pregação” meio desengonçada:
 Quando você conversa com seus filhos pequenos, você usa o mesmo vocabulário que usa comigo ou adapta suas palavras à idade mental e ao entendimento que eles conseguem ter agora? 
Com um pouco de hesitação, por não saber o que viria depois, concordou comigo. E eu continuei.
– Agora, imagine Deus tentando se comunicar com aquele povo. Faltava luz elétrica, água encanada, conhecimentos médicos decentes, muita gente vestia pele de carneiro, andava descalça, não tinha papel higiênico para limpar a bunda, uma zona, enfim. E Deus lá, tentando se comunicar  com aqueles broncos, com aqueles caipiras. Só podia fazer isso através de alegorias, de imagens, exatamente como você faz hoje com seus filhos! Por isso, meu caro ..., você não pode acreditar piamente em que tudo o que lê na Bíblia, pois ali existem  muitas alegorias, muitas metáforas e muita maluquice, você não deve fazer uma leitura puramente literal da Bíblia. 
E ele ficou me olhando com um sorriso entre bondoso e irônico, como se dissesse –“sabe de nada, inocente!

Um dia, de pura sacanagem, mandei a esse amigo uma piada muito boa (para mim, pelo menos), a história de Jesus caminhando sobre as águas. A coisa é mais ou menos assim: Estava Jesus sentado com seus discípulos à beira do lago de Tiberíades, quando se levantou e saiu caminhando sobre as águas. Pedro ficou muito impressionado e disse:
Senhor...
E Jesus responde:
Aquele que crê em mim que me siga.
E Pedro entrou na água, mas notou que, ao contrário do Mestre, estava com água pelas canelas. E chamou de novo:
Senhor!
E ouviu a mesma resposta.
Aquele que crê em mim que me siga.
Pedro não teve dúvidas continuou, mas a água chegou aos joelhos. Chamou de novo e, de novo a mesma resposta. Por isso, continuou. Quando a água já estava pelo meio do peito, já desesperado, suplicou:
Senhor!!!
E Jesus, de novo, com a calma da sabedoria repetiu:
Aquele que crê em mim que me siga.
Foi quando um dos discípulos, já penalizado, disse:
Pô, Jesus, não sacaneia! Ensina para ele o caminho das pedras!

Quando o encontrei, perguntei se tinha lido meu e-mail. Disse-me que sim. E o filho da puta aqui cutucou de novo:
E aí, gostou da piada? Muito boa, né?
E ele me respondeu com uma ponta de repreensão na voz:
É, mas não faça isso de novo.

E o pior é que eu fiz de novo, relembrando essa excelente pessoa.


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