segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

EVOÉ MOMO!

Quando eu e meu irmão éramos bem pequenos, minha mãe nos levava ao centro da cidade para ver a muvuca do carnaval. Ao longo da Avenida Afonso Pena um serviço de alto-falantes alternava propagandas e músicas de carnaval. Nessa avenida e também nas ruas transversais encontravam-se barracas que vendiam máscaras, colares, apitos, serpentina, confete e... lança-perfume. Por toda a região central encontravam-se pessoas fantasiadas, alguns apenas com um chapéu ou quepe de marinheiro, outros com “máscara de zorro”, etc. 

A fantasia mais comum (e mais barata) era a de “gatinha(o)”. Normalmente, eram vistas em grupos de três ou quatro pessoas. Uma fronha ou saco de pano branco (assim imagino) era o componente principal: com as duas pontas opostas à abertura eram feitas duas orelhas; três furos definiam a boca e os olhos; alguns riscados em forma de arco, saindo da boca e estavam feitos os bigodes. Uma camisa branca de manga comprida, um par de luvas brancas e calça comprida preta completavam a fantasia. A esse conjunto às vezes era adicionada uma varinha, usada para conter os mais abusados ou aqueles interessados em identificar o sexo da(do) gatinha(o) pelo método Braille (sabe como é, né?).

Eu nunca consegui identificar se os "gatinhos" eram mulheres ou homens, de que raça eram nem se eram dragões  de feiura ou gatinhas mesmo  (ao contrário do Erasmo Carlos, eu era uma criança e não entendia nada).

Pois bem, foi justamente essa capacidade de tornar incógnita a pessoa assim vestida que condenou a fantasia. Seu uso foi proibido, sob a alegação de que ladrões e gente mal intencionada podiam se beneficiar de seu uso.

Nem preciso falar que o lança-perfume, cujo cheiro era delicioso, foi criminalizado e proibido, pois era utilizado como droga por algumas pessoas. Eu mesmo flagrei um tio cheirando a substância em um lenço, na companhia de dois amigos. Agora, morrer de tanto beber cachaça, isso podia. E continua podendo.

Nessa época desfilavam pela avenida os blocos caricatos, gente com o rosto pintado, de uniforme, montada em um caminhão e mandando ver na batucada. Imagino que devia existir alguma escola de samba. Mas, de tão indigente e pobre, ninguém nem dava notícia. E carnaval bom era o de clube.

Por volta de 1980, o prefeito resolveu incrementar a folia de BH. Arquibancadas provisórias (com camarotes e acesso pago) foram erguidas ao longo da avenida. Uma decoração cheia de lâmpadas e plásticos e cores imitando o que se fazia no Rio inundou a cidade. Verbas foram dadas para blocos e escolas de samba. E a coisa pegou fogo (no sentido figurado). Mas a indigência das escolas continuou. Bastou o prefeito ser trocado para acabar essa mamata.

Em 1990 ocorreu nova mudança: o desfile de blocos e escolas foi enxotado para uma tal de "Via 240", na saída da cidade (fruto talvez de um desejo inconsciente de expulsar definitivamente o Carnaval de BH). Só voltou para a Avenida Afonso Pena em 2014.

Enquanto isso, ao longo dos anos, talvez fruto de tantas intervenções, BH foi se transformando em cidade-fantasma durante esse período, pois o carnaval de clube já não atraia quase ninguém; quem queria se divertir viajava para cidades onde o carnaval de rua realmente acontece (com ou sem apoio das prefeituras). E quem queria ver desfile de escolas de samba tipo ostentação, ia para o Rio.

De uns dois anos para cá, entretanto, o carnaval de BH ressuscitou, graças aos blocos de rua e ao Facebook. Ainda bem, pois eu nunca consegui entender as diversas providências tomadas pela PBH para acabar de forma definitiva com a comemoração do que é (para mim) a última festa pagã, a última orgia liberada do mundo ocidental (nada sei do resto).

Mas, contrariando a ideia de que “se está bom, não mexe”, a PBH resolveu “organizar” o carnaval de rua, resolveu definir horários e locais para os blocos informais que surgiram. Justamente os blocos que trouxeram de volta a espontaneidade, a irreverência (e as pessoas que viajavam para outras cidades).

Minha previsão: não demora e começa outra debandada daqueles que querem se divertir despreocupadamente, sem se preocupar com horários ou locais permitidos. Para mim, o verdadeiro espírito do Carnaval passa longe das escolas de samba do Rio e São Paulo, que apresentam um espetáculo tipo exportação. O Carnaval verdadeiro, aquele cheio de ironia, esculhambação, crítica social e descontração está presente nos blocos de rua. Querer organizar essa zona é prova de autoritarismo, rabugice, mau humor. 

A melhor definição que me ocorre para explicar o Carnaval encontra-se em um poema transcrito a seguir, de autoria do Manuel Bandeira. O nome é "Bacanal" (como disse, para mim, o Carnaval é a última orgia permitida, a última festa pagã do mundo atual. Por isso, apesar do nome escolhido provocar algum desconforto em alguns, o poema reflete bem o espírito dessa festa). Saca só:
   

BACANAL

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
- Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não domo!…
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!


Evoé” é uma palavra do tempo de nossos avós e é como que uma exclamação para exprimir alegria, entusiasmo, etc. O que se espera que as pessoas sintam no Carnaval.


2 comentários:

  1. Respostas
    1. Pois é, Marreta, veja como as pessoas são contraditórias, múltiplas. Um sujeito anti-social de nascença gosta de carnaval (de rua). É fato também que eu disfarço tanto minha "misantropia" que até eu mesmo sou enganado. Mas os pés ficam colados no chão.

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