Quando eu e meu irmão éramos bem
pequenos, minha mãe nos levava ao centro da cidade para ver a muvuca do
carnaval. Ao longo da Avenida Afonso Pena um serviço de alto-falantes alternava
propagandas e músicas de carnaval. Nessa avenida e também nas ruas transversais
encontravam-se barracas que vendiam máscaras, colares, apitos, serpentina,
confete e... lança-perfume. Por toda a região central encontravam-se pessoas
fantasiadas, alguns apenas com um chapéu ou quepe de marinheiro, outros com
“máscara de zorro”, etc.
A fantasia mais comum (e mais
barata) era a de “gatinha(o)”. Normalmente, eram vistas em grupos de três ou
quatro pessoas. Uma fronha ou saco de pano branco (assim imagino) era o
componente principal: com as duas pontas opostas à abertura eram feitas duas
orelhas; três furos definiam a boca e os olhos; alguns riscados em forma de
arco, saindo da boca e estavam feitos os bigodes. Uma camisa branca de manga
comprida, um par de luvas brancas e calça comprida preta completavam a fantasia. A esse conjunto às vezes era adicionada uma varinha, usada para conter os mais
abusados ou aqueles interessados em identificar o sexo da(do) gatinha(o) pelo
método Braille (sabe como é, né?).
Eu nunca consegui identificar se
os "gatinhos" eram mulheres ou homens, de que raça eram nem se eram
dragões de feiura ou gatinhas mesmo (ao contrário do Erasmo
Carlos, eu era uma criança e não entendia nada).
Pois bem, foi justamente essa
capacidade de tornar incógnita a pessoa assim vestida que condenou a fantasia.
Seu uso foi proibido, sob a alegação de que ladrões e gente mal intencionada
podiam se beneficiar de seu uso.
Nem preciso falar que o
lança-perfume, cujo cheiro era delicioso, foi criminalizado e proibido, pois
era utilizado como droga por algumas pessoas. Eu mesmo flagrei um tio cheirando
a substância em um lenço, na companhia de dois amigos. Agora, morrer de tanto
beber cachaça, isso podia. E continua podendo.
Nessa época desfilavam pela
avenida os blocos caricatos, gente com o rosto pintado, de
uniforme, montada em um caminhão e mandando ver na batucada. Imagino que
devia existir alguma escola de samba. Mas, de tão indigente e pobre, ninguém nem
dava notícia. E carnaval bom era o de clube.
Por volta de 1980, o prefeito
resolveu incrementar a folia de BH. Arquibancadas provisórias (com camarotes e acesso pago) foram erguidas
ao longo da avenida. Uma decoração cheia de lâmpadas e plásticos e cores imitando o que se
fazia no Rio inundou a cidade. Verbas foram dadas para blocos e escolas de
samba. E a coisa pegou fogo (no sentido figurado). Mas a indigência das escolas
continuou. Bastou o prefeito ser trocado para acabar essa mamata.
Em 1990 ocorreu nova mudança: o
desfile de blocos e escolas foi enxotado para uma tal de "Via 240",
na saída da cidade (fruto talvez de um desejo inconsciente de expulsar
definitivamente o Carnaval de BH). Só voltou para a Avenida Afonso Pena em 2014.
Enquanto isso, ao longo dos anos,
talvez fruto de tantas intervenções, BH foi se transformando em cidade-fantasma
durante esse período, pois o carnaval de clube já não atraia quase ninguém; quem queria se divertir viajava para cidades onde o
carnaval de rua realmente acontece (com ou sem apoio das prefeituras). E quem
queria ver desfile de escolas de samba tipo ostentação, ia para o Rio.
De uns dois anos para cá,
entretanto, o carnaval de BH ressuscitou, graças aos blocos de rua e ao
Facebook. Ainda bem, pois eu nunca consegui entender as diversas providências
tomadas pela PBH para acabar de forma definitiva com a comemoração do que é
(para mim) a última festa pagã, a última orgia liberada do mundo ocidental
(nada sei do resto).
Mas, contrariando a ideia de que
“se está bom, não mexe”, a PBH resolveu “organizar” o carnaval de rua, resolveu
definir horários e locais para os blocos informais que surgiram. Justamente os
blocos que trouxeram de volta a espontaneidade, a irreverência (e as pessoas
que viajavam para outras cidades).
A melhor definição que me ocorre para explicar o Carnaval encontra-se em um poema transcrito a seguir, de autoria do Manuel Bandeira. O nome é "Bacanal" (como disse, para mim, o Carnaval é a última orgia permitida, a última festa pagã do mundo atual. Por isso, apesar do nome escolhido provocar algum desconforto em alguns, o poema reflete bem o espírito dessa festa). Saca só:
BACANAL
Quero beber! Cantar
asneiras
No esto brutal das
bebedeiras
Que tudo emborca e faz em
caco…
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma
levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro
assomo…
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais
queres,
além de versos e mulheres?
- Vinhos!… o vinho que é o
meu fraco!…
Evoé Baco!
O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não
domo!…
Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande
Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos
obscenos,
Evoé Vênus!
“Evoé” é uma palavra do
tempo de nossos avós e é como que uma exclamação para exprimir alegria,
entusiasmo, etc. O que se espera que as pessoas sintam no Carnaval.
Evoé, Zé!!!
ResponderExcluirPois é, Marreta, veja como as pessoas são contraditórias, múltiplas. Um sujeito anti-social de nascença gosta de carnaval (de rua). É fato também que eu disfarço tanto minha "misantropia" que até eu mesmo sou enganado. Mas os pés ficam colados no chão.
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