sábado, 28 de maio de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 02 B

Minha mãe morreu com quase 89 anos, vítima de Alzheimer. Talvez tivesse uma propensão genética para sofrer de algum tipo de demência, pois sua mãe morreu com 74 anos, do que na época chamou-se de "arteriosclerose" (ou aterosclerose), quase como um bebê.

Creio que o "start" da doença de Dona Lia aconteceu depois de ter sofrido derrame nos dois olhos, fruto provável de um pico de pressão intraocular em quem nunca sofreu de hipertensão. Aplicações de laser foram feitas para corrigir ou amenizar esse problema, mas nunca mais ela conseguiu enxergar direito. A partir daí, só conseguia ver alguma coisa com a lateral do olho (essa explicação é minha!), pois quando eu chegava perto dela, percebia que estava olhando na direção de uma de minhas orelhas (fáceis de localizar!), em vez de me fitar olho no olho.

Com essa deficiência, ficou impedida de sair sozinha para fazer algum compra pelas redondezas, o que talvez tenha mudado o padrão de circulação sanguínea (minha suposição!). Para mim, essa explicação faz sentido se comparada ao comportamento de minha avó, que disse uma vez já ter trabalhado muito e que "agora queria descansar", o que fazia ao ler os jornais e sei lá mais o que, sentada ou reclinada na cama. Seis anos depois estava morta. A imagem que faço disso é o ato de andar de bicicleta: parou de pedalar, caiu.

Parêntese irresistível: com a Dilma aconteceu justamente o contrário, pois caiu de tanto pedalar (duh!). Fim do parêntese.

Apesar da limitação que a impedia de sair à rua, continuou a cuidar da casa: limpava, cozinhava, lavava roupa e ... pregava botões! Lembrando-me do Djavan, "mais fácil aprender japonês em Braille".

Essa inatividade parcial foi enormemente aumentada quando minha tia Aidê aposentou e mudou-se para a casa que possui ao lado da de minha mãe. Por pena, solidariedade ou falta do que fazer, começou a ajudar Dona Lia nos afazeres domésticos. Olha a bicicleta aí de novo!

O que sei é que a demência instala-se devagar e, no início, provoca surpresa e espanto em quem convive com o doente. Foi o que aconteceu com minha avó, foi o que aconteceu com minha mãe. Como sempre fui um filho displicente e ausente, ia vê-la no máximo uma vez por mês. Minha irmã morava com ela e meu irmão ia toda semana visitá-la. Então, para eles a barra foi muito mais pesada, principalmente para minha irmã.

Quando ainda estava conversando razoavelmente bem, mostrava algum vaso de flor que sempre enfeitava a sala simples e saía esse diálogo:
- "Você viu que bonita aquela flor ali?"
- "Vi, mãe. Muito bonita mesmo!"
- "Sabe onde eu peguei? Na porteira da fazenda do Orlando!"
Orlando era seu primo e já tinha morrido uns duzentos anos antes. E a cada vez que o diálogo se repetia, havia outra flor qualquer, mas a porteira era sempre a mesma.

Às vezes me perguntava se eu já tinha visto a "Dindinha" (sua avó, morta antes de eu nascer). 
-"Não, mãe. Creio que ela saiu ou foi comprar pão". Eu aproveitava para fazer graça para minha irmã: -"Espero não vê-la tão cedo!"

Pode parecer insensibilidade de minha parte, mas eu já era escolado desde a demência de minha avó (já contei esse caso aqui no Blogson). Ao concordar com qualquer sandice que dizia - em vez de tentar corrigi-la - eu estava apenas evitando constrangê-la (e pensar que eu saquei isso quando tinha apenas uns dezesseis anos...). Um dia, entretanto, senti uma pena imensa, quando me disse colocando a mão em minha perna:
- "Sabe, Zé, eu fiquei tão triste outro dia! Eu tentei lembrar meu nome e não consegui!"
- "Preocupa não, Dona Lia, eu também tenho andado muito esquecido, às vezes até esqueço se já almocei ou não!" E fazia algum comentário idiota sobre velhice, tipo -"É, Dona Lia, a senhora está perdida! Seus filhos estão velhos demais!"
Ela ria e respondia que não, que eu estava muito bonito (preciso lembrar que as mães não tem desconfiômetro e que a minha, além de não enxergar direito, já estava caducando).

E a doença foi evoluindo e a confusão mental ficando cada vez maior. Um dia, depois de abraçá-la, ela comentou que "os meninos estavam na escola e não demorariam a chegar". Mas os "meninos" éramos nós! Em outra visita, estando já de saída, dei nela um beijo e um abraço estilo Jotabê (dava nela uma chacoalhada, sempre a tratando por "Dona Lia". Parece que ela achava aquilo o máximo, pois se fingia de zangada, mas ria feliz). Em seguida, fui despedindo-me das demais pessoas que ali estavam - irmã, sobrinho, tia Aidê e cunhado.  Só que minha mulher continuou a conversar com minha irmã. Quando ela finalmente despediu-se de todos, voltei a abraçar minha mãe e a reação foi típica do Alzheimer: - "Ô, meu filho, você chegou?"

Nem todo mundo consegue entender ou aceitar essa falta irreversível de lógica. Meu irmão, teoricamente tão escolado como eu pelo convívio na adolescência com nossa avó, teve um dia a reação mais estúpida que eu jamais poderia esperar dele. Creio que exasperado pelas constantes referências à "presença" de minha avó (falecida em 1972) e da "Dindinha" (morta antes de 1950), colocou minha mãe dentro do carro, veio até Belo Horizonte (minha mãe morava em Lagoa Santa, município da região metropolitana), levou-a ao cemitério do Bonfim e, mostrando o túmulo (onde hoje ela também está) e disse-lhe: 
-"Sua mãe está enterrada aqui!Preciso fazer algum comentário?

Em uma das últimas vezes que visitei Dona Lia, talvez a penúltima, antes que eu a visse, Tia Aidê comentou que minha mãe apresentava novo comportamento: ficava sentada na beira da cama, virada para a parede, em silêncio e de cabeça baixa. Quando cheguei à porta do quarto, lá estava ela quietinha, olhando para o nada, passando a impressão de que estava muito triste ou deprimida. Chamei por ela, fui logo brincando como antes, mas sua reação foi de apatia e, talvez, indiferença, como se não estivesse me reconhecendo direito.

Ao contrário de sua mãe, que morreu apresentando reações de um bebê, Dona Lia ainda falava e andava na última vez em que estive com ela. Quando cheguei, minha tia avisou que estava deitada. Ao entrar no quarto pude ver que estava acordada e de olhos abertos. Sentei-me a seu lado, falei seu nome (-"E aí, Dona Lia?") e tentei lhe dar a "chacoalhada Jotabê", que tanto a fizera rir satisfeita em outros tempos. A reação que teve foi a que eu menos esperava. Com raiva, exclamou: -"Pára! Você quer me quebrar?"

E eu fiquei ali, constrangido e sem saber o que dizer, mas com a certeza de que não mais conseguiria fazê-la rir ou sorrir ao me ver chegar.


2 comentários:

  1. Só te digo uma coisa, se vc não condensar esses textos uma dia desses, vou fazer, reivindicar e ficar rica. Kkk Gostei muito mesmo e ri das pedaladas. Na minha família só se morre de Alzheimer, parkinson e esclerose, então sei como é aguardar na fila, mas deixe de ser apressado que a sua vez chega um dia.
    "J"

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    1. Esse lance da compilação é uma boa! Assim, daqui algum tempo, eu poderei dizer "olha, eu tinha memória!"

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