sexta-feira, 27 de maio de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 02 A

Minha mãe nasceu em 19 de dezembro de 1920 e morreu em 28 de outubro de 2009 (dia de São Judas Tadeu, segundo minha irmã). Nesse intervalo de tempo teve sonhos, casou-se, sofreu humilhações, teve três filhos e seis netos. Acabou? Não, claro. O problema, a dificuldade de falar sobre ela está no fato de ser minha mãe.


Não que eu tenha grilo em detonar Dona Lia (mesmo que isso seja deselegante). Até porque não há mãe perfeita, inatingível, intocável, no pedestal (nem pai). Como cantaram os tropicalistas, "ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração dos filhos", uma releitura sacana de um verso do Coelho Neto ("ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração!").


Mas vamos tentar avançar. Minha mãe chamava-se Maria (só Maria, assim como eu sou apenas José), mas Lia era a forma como todos a chamavam. Para ser sincero, nem todos. Duas sobrinhas de meu pai, gêmeas univitelinas, talvez por só terem começado a falar com quatro anos (já contei esse caso), quando falavam com ou de minha mãe diziam "Liarr", produzindo um som rouco, afrancesado, como se estivessem pigarreando. A mesma "rouquidão" acontecia ao pronunciarem o nome de meu irmão - "Eduarrrdo" Quando falavam meu nome diziam "Cecinho", querendo dizer "Zezinho".

Era dócil de trato e se dava bem com todas as cunhadas (esse não era exatamente um padrão familiar). Talvez essa docilidade fosse uma tática de defesa, pois, já casada, viu-se obrigada a continuar morando na casa de sua mãe. Como já foi contado antes, meu pai e seus irmãos quebraram na época da Segunda Guerra. Essa dureza, essa falta de dinheiro, a provável incapacidade de meu pai reagir a isso, a conseguir soerguer-se fez com que ela só conseguisse ter sua casinha já com quase sessenta anos. Lembro-me de algumas vezes tê-la ouvido dizer em tom ligeiramente queixoso do sonho ainda não alcançado de ter sua própria casa. Imagino que nessas horas já tinha engolido doses adicionais de humilhações e aborrecimento.

Mas, preciso admitir, não acredito que ela fosse a perfeitinha, "prendada e do lar" apenas. Imagino que tinha as garras retráteis como os felinos. Não fosse assim, meu psiquiatra não teria feito referência a seu comportamento de "mãe castradora". Mas não era barraqueira. Nem meu pai.

Quando eventualmente discutiam, não havia bate-boca nem se ouvia nada com volume acima do normal. Meu pai era particularmente bom na esgrima de sarcasmo e ironia ferina. Minha mãe era perita em silêncios e chantagem emocional. Assim, quando ouvia palavras mais cortantes (ele era muito bom nisso), emburrava e ficava uma semana sem dar uma palavra com ele, que ficava no maior "porco", com cara de cachorro que peidou na igreja. É importante destacar que esses espasmos ocorriam muito esporadicamente, pois, no geral, viviam e conviviam muito bem.


A demência de minha avó começou a dar sinais quando eu tinha uns quinze, dezesseis anos. Isso significa que durante uns vinte anos minha mãe deve ter-se aborrecido e sentido a humilhação de ouvir comentários pouco elogiosos à indolência de meu pai e sua incapacidade de arranjar um emprego, qualquer que fosse ele. Essas minhas suspeitas são mais que suposições, pois ouvi de uma antiga amiga de minha mãe que essa era a avaliação da "família". Infelizmente, meu pai esmerava-se em fornecer lenha para essa fogueira, pois acordava muito tarde (provavelmente em consequência de depressão e sensação de impotência - ou preguiça mesmo), saindo após o almoço sabe Deus para onde. 

Às vezes chegava esperançoso e comentava com minha mãe que tinha conversado outra vez com o deputado Aécio Cunha (pai do Aécio Neves) e que teria recebido dele a "milésima" promessa de uma sinecura ou boquinha em algum órgão público. Imagino que se os dois ainda estivessem vivos, meu pai estaria esperando o cumprimento dessa promessa de candidato que já está eleito. 

Nunca tive coragem nem interesse em conversar sobre isso com meus pais, mas fico meio perplexo por meu pai nunca ter exercido a medicina (pois parecia ser um bom médico), preferindo tentar ganhar a vida como farmacêutico - mesmo aparentando não ter o menor tino comercial para isso - e, depois, como químico. Talvez a medicina da época fosse exercida em consultórios (que meu pai não tinha condição financeira de montar), talvez a inexistência de planos de saúde fosse outro limitador, não sei. O que sei é que meu pai e seu irmão Nhô, em virtude das dívidas provocadas pela quebra dos negócios da família, passaram todo o período da minha infância envolvidos com o pagamento de agiotas, pegando aqui, pagando ali, etc.

O que isso tinha a ver com minha mãe? Tudo, claro, pois quem aparava os raios de mau humor de meu pai, quem ouvia calada os comentários ácidos de familiares, quem era obrigada a cozinhar, lavar, passar e fazer faxina em uma casa onde moravam dez adultos e duas crianças era ela, que ainda dava um jeito de costurar para a irmã rica só para ganhar alguns trocados.

Essa situação mudou com o tempo? Claro que mudou, pois os irmãos foram casando, minha avó começou a catar coquinho no asfalto e meu pai finalmente arranjou um emprego fixo em empresa particular, com carteira assinada (eu tinha uns treze anos quando isso aconteceu). Óbvio que a vida ficou menos opressiva, mas até chegar a esse ponto, nem consigo imaginar os sapos que minha mãe foi obrigada a engolir. Se vacilar, pode ter sido até a responsável pela extinção de alguma espécie.


Minha avó morreu em 1972. Com a morte de meu avô em 1976, ficaram morando na casa onde vivi toda minha vida de solteiro apenas meus pais, minha irmã e minha tia Aidê (que tinha uma carta na manga). Depois da morte de minha avó, aos poucos, minha tia foi comprando dos irmãos interessados em vender, a parte que lhes cabia da casa de sua mãe. Assim, pouco tempo depois de perder o pai, tia Aidê resolveu vender a casa, pois já era dona de 50% do imóvel. 

Para encurtar a conversa, vendeu para minha mãe uma casinha que possuía em Lagoa Santa (mas ficou com metade do lote), um processo tão intrincado, complexo e obscuro que motivou o fato de - logo depois da morte de Dona Lia - eu ter sido também declarado "morto" por meu irmão, tudo por causa de um mal-entendido gigantesco (ele entendeu mal). Depois disso, mesmo que continue a amá-lo, mesmo que continue rezando (orando) por ele, mesmo que continue gostando dele como sempre gostei, sempre digo de sacanagem que só voltaremos a nos falar no Centro Espírita Grande Oriente.

Mas antes que esse caldo entornasse e antes que o "alemão" invadisse sua mente, minha mãe viveu nessa casinha e nessa cidade talvez os melhores e mais tranquilos anos de sua vida, ao lado de meu pai, de minha irmã e, no tempo certo, de meu cunhado e meu sobrinho. É importante dizer que esse cunhado tornou-se quase um filho para meus pais, tal a paciência e atenção que dedicou a eles.


É quase impossível falar de minha mãe dissociada de meu pai. Mesmo sendo tão diferentes em sua essência, eram extremamente unidos, fazendo uma versão "casal" do Gordo e o Magro, pois minha mãe era extremamente magra e meu pai, depois de conseguir abandonar definitivamente o cigarro, obeso mórbido, graças a um apetite filhadaputa. No final de suas vidas, dormiam em quartos separados (- "seu pai ronca demais!"), mas lembro-me do dia em que minha mãe ainda lúcida comentou que "sentia muita falta" de meu pai, falecido alguns anos antes.

Resumindo, Dona Lia e Seu Amintas eram pessoas cheias de defeitos e qualidades (como aliás, todo mundo é), mas deixaram para os filhos a melhor herança que alguém poderia receber: o exemplo de um amor extremado por nós. E eu os amava por isso.


E agora, chega de falar da fase lúcida e sofrida de minha mãe, porque a continuação deste texto será uma aula de alemão (em outro post). Quem quiser aprender, terá de esperar até a próxima semana (ou não). "As aftas ardem e doem!", "Deutschland über alles"! O que quer que isso signifique. 
  

2 comentários:

  1. Esse texto foi a melhor coisa que li hoje, de verdade. E é por essas e outras que vc não devia deixar de escrever.

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    1. Este comentário encurtou o fim do blog em uma semana, pois a segunda parte sairá hoje ainda (carente emocional congênito, já viu...). Para mim, é a melhor das duas.

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