sexta-feira, 6 de maio de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 01

Preciso fazer uma confissão antes de começar: os próximos posts com lembranças sobre a família de minha mãe estão sendo escritos meio sem vontade, "só para cumprir tabela". Talvez por isso a gramática esteja sendo mais atropelada que o normal, pois não estou com a obsessão tradicional de corrigir ou revisar muito (e, ainda assim, continuar trucidando a língua).

O motivo principal pode ser o receio de magoar algum parente ou escandalizar meus irmãos, pois os primeiros posts, talvez mais descontraídos, foram originalmente escritos para meus filhos. Só depois é que resolvi publicá-los no Blogson. Já a série que hoje se inicia está sendo escrita especificamente para o blog (onde meus filhos poderão ler).

Uma das explicações para esse receio de magoar ou ofender pode ser o fato de não achar graça em textos "chapa branca", de louvação ou com a "poeira escondida atrás da porta". Para mim, a coisa funciona como um retrato sem retoque: "o nariz é grande? Sim, é. O comportamento é risível ou reprovável? Sim!"

Nada disso é necessariamente verdade - ou pode ser e até mais ainda. E daí? Isso mudará alguma coisa? Claro que não. Mas que está meio sofrido, está. Bom, chega de frescura.  


A mais velha das filhas de meus avós maternos é a Tia Ci. Aliás, é a mais velha de todos os irmãos. Nasceu em 19/02/1919 e chama-se Araci, mas, para todos os parentes é Ci. Ou Tia Ci. 

Tia Ci casou-se com Tio Tristano, um italiano que chegou ao Brasil ainda criança, juntamente com os pais, a irmã mais velha e um irmão. Segundo ouvi dizer, seu pai não achou muita graça em permanecer no país e resolveu voltar para a Itália. Chiara (ou Dona Clara, como era chamada por todos), de temperamento forte, autêntica “fêmea alfa”, recusou-se a voltar, mas foi com ele até o Rio de Janeiro (talvez para ter certeza que iria mesmo entrar no navio que o levaria de volta).

No momento do embarque e separação definitiva, o italiano ainda exclamou para que ela voltasse com ele (até imagino a cena: –“Chiara, torna con me!), mas o que recebeu de volta foi uma solene “banana”. Imagino que foi a partir daí que ela meteu a cara no trabalho e venceu na vida, a exemplo de outros imigrantes que ficaram ricos mesmo tendo aqui chegado com uma mão à frente e outra atrás. O nome dessa mágica é trabalho duro, dedicação, tino comercial, esperteza ou o que quer que seja. Só não combina com “dolce far niente”.

Morava em uma casa de dois andares construída em local super nobre, a menos de 50 metros da saída de serviço do Palácio da Liberdade. Possuía uma casa de campo também de dois andares em Lagoa Santa, construída na época em que ruas pavimentadas só existiam no centro do município. Essa casa, destino de boa parte das minhas férias escolares, ainda existe e fica no centro de um terreno que ocupa metade de uma quadra (ou quarteirão) à beira da lagoa.

A italiana Chiara devia ser foda nos negócios, pois, além das duas casas, era também dona de um hotel “meia estrela” no centro de BH, lotes bem situados (um deles vendido a ela por minha avó), um predinho comercial de três pavimentos e sei lá mais o que. O que sei é que quando a conheci, já era bem velha e rica, bem rica. E chata, bem chata.

E minha tia morava com ela. Aliás, com ela, com a “Nona” (mãe da sogra, já esclerosada), com a cunhada “solteirona” e com um cunhado ainda solteiro. Creio que o arranjo era assim: sogra e cunhados ocupavam os quartos do segundo andar. A “casa” propriamente dita, com sala (enorme), cozinha, saleta de estudos (ou escritório), banheiro e os quartos ocupados por minha tia, o marido e os dois filhos, “acontecia” mesmo no térreo.

Talvez pelo treino adquirido por conta da convivência forçada com a sogra jabiraca ou por uma ótima inteligência emocional, o fato é que Tia Ci sempre se mostrou a mais tranquila e bem humorada da família (escorada também na máxima de que “rico ri à toa”).


Graças à pindaíba em que vivíamos, minha mãe começou a costurar para a irmã, sogra e cunhada. Para facilitar esses lances de prova, ajuste, bainha e sei lá mais o que, tudo era feito nessa casa. Para onde eu ia, levado por minha mãe. Ali fazia meu dever de casa, lanchava, lia alguns livros e revistinhas dos primos, ouvia discos e coçava saco até anoitecer. Às vezes era obrigado a jantar com toda a família. E era obrigado mesmo, pois sempre rolava uma sopa de macarrão com legumes, que eu odiava. O macarrão era daqueles que parece um cano de pvc, de tão grosso. Creio que o nome do infeliz é rigatoni

Então, tomar aquela sopa onde batata era o único ingrediente de que eu gostava, era dureza. E vinha a velha autoritária encher meu saco por me recusar a tomar aquilo. Provavelmente deveria pensar que pobre não tem escolha.

Um parêntese: essa constatação me fez lembrar um cunhado que já foi "o" comedor. Quando alguém comenta sobre os muitos dragões que já pegou, ele diz, fazendo cara de filho da puta:
- "Como a gente era pobre, meu pai me ensinou a comer de tudo. E quem come qualquer coisa, está sempre mastigando". Figuraça.

Mas, voltando às lembranças de minha tia e familiares, uma coisa que sempre me deixava incomodado - mesmo sendo criança - é o fato de sua sogra falar em italiano com os filhos na nossa presença. Sempre tive a impressão que estaria criticando alguém. No caso, Tia Ci, minha mãe ou eu mesmo. Muito tempo depois descobri uma curiosidade interessantíssima: a língua que falavam era um dialeto da região onde nasceram. À exceção da filha mais velha que tinha voltado à Itália para estudar em internato, creio que nenhum deles sabia falar a língua oficial do país de origem.


Os dois filhos de Tia Ci regulam em idade comigo e com meu irmão. Por isso,  eram as únicas crianças com quem brincávamos - quando podíamos nos encontrar. Isso podia ser bom ou ruim, dependendo da época do ano. Se não fosse Natal, Dia das Crianças, Páscoa, férias escolares ou o aniversário de um deles, era bem legal. As outras datas deixavam um travo meio amargo na boca, algo assim como um “gosto de fundo de gaiola”. Porque nesses momentos a distância quase abissal entre a nossa pobreza e sua riqueza ficava explícita. Os brinquedos que ganhavam e as viagens que faziam para a praia me deixavam babando.

Eu não tinha inveja ou raiva ou despeito pelo que possuíam, ganhavam ou faziam; o que eu sentia é tristeza pelo que eu não tinha nem jamais ganharia: bicicletas Monark, patinetes Gulliver, espingardas de chumbinho, patins, bolas de futebol, vôlei e basquete de couro, mesas de sinuca, pebolim e ping-pong, arco e flecha, jogo de dardos, brinquedos a pilha, molinetes e varas (nylon) de pesca, espingardas de raios (a pilha), ovos de chocolate maiores que um ovo de avestruz, brinquedos importados, brinquedos, brinquedos, brinquedos.

Como aconteceu quando Dona Clara foi à Itália para receber um valor correspondente à desapropriação de um terreno que sua família possuía, localizado no eixo de uma rodovia que seria construída. A velha preparou um “cinto de utilidades” a ser usado sob a roupa, para acomodar e trazer a grana em dinheiro vivo que recebeu. Além do dinheiro, trouxe também presentes para toda a família. Até eu e meu irmão fomos lembrados! Podem acreditar! Meus primos ganharam trocentos brinquedos italianos incríveis, eu ganhei uma bolinha de gude toda vermelha e meu irmão ganhou uma, toda verde. Muito bom!

Apesar dessa fartura de presentes e mimos, os filhos de Tia Ci provavelmente eram (também) muito ansiosos, pois destruíam lápis, borrachas e canetas no dente. Lápis de cor importados, inúmeras canetas-tinteiro Parker 51, nada disso resistia aos hábitos de roedor neurótico dos primos. Para evitar "problemas de saúde", diariamente minha tia lavava e acondicionava tudo nos estojos, substituindo os mais danificados. Verdadeiro castigo de Prometeu.


Tio Tristano, apesar de médico e ao contrário de seu irmão Jorge, era muito introvertido. Talvez por isso, creio que raramente olhava para as pessoas com quem conversava. Tinha o semblante sempre fechado e a mania de ficar olhando fixamente para algum ponto da parede, piscando muito. Às vezes exclamava seu bordão predileto: -“Amintas, a situação está preta"!

No final de 1973, no dia do baile de formatura de meu irmão, eu minha Amada fomos à casa do Tio Tristano para pegar carona com meu primo mais novo, que também estava se formando. Minha mulher é linda, sempre foi linda e estava particularmente linda nesse dia. Ao vê-la toda maquiada, vestido longo e cílios postiços, quase a matou de vergonha e constrangimento, pois ficou olhando para ela fixamente, mesmerizado, examinando-a de perto como quem vê um ET acorrentado. Tia Ci, rindo, comentou que ele a estava deixando sem graça, pois nem se conheciam antes desse dia. Foi quando ele “despertou do transe hipnótico” e disse que ela estava igualzinha à Jane Fonda.


Só agora me dei conta de me lembrar mais das pessoas e casos no entorno de Tia Ci do que dela, propriamente. Mas é real. A época em que tivemos mais contato foi quando minha irmã nasceu, pois ela foi vários dias à casa de minha avó só para preparar o almoço, enquanto minha mãe estava “de resguardo”. Foi um momento muito legal.


O tempo passou e hoje, no terreno da casa de Belo Horizonte, existe um prédio de apartamentos construído originalmente para os filhos e netos de Dona Clara. Creio que só Tia Ci continua a morar lá. A casa de Lagoa Santa pertence a apenas um ou dois dos quatro netos da italiana e o que era um hotel de verdade tornou-se um pardieiro decadente.

Mas minha Tia Ci está bem e sempre animada. Não faz muito tempo, tive notícias dela: teria quebrado algum osso da perna ao cair devido ao balanço do navio que a levaria em um cruzeiro pela Grécia com os filhos, netos e bisnetos.

Como é minha madrinha de batismo, já cobrou várias vezes minha visita, argumentando que não demora muito a morrer, pois está com 97 anos. Até hoje, nos últimos cinquenta anos, só fui visitá-la uma única vez. Que eu poderia agora dizer a ela? -“Eu vou, Tia Ci, eu vou”.

3 comentários:

  1. Muito bom JB, detalhista e chata como sou, gosto pra caramba dessas descrições. Acho chato quando os autores tornam os textos polidos demais, empoados demais, uma maquiagem desnecessária e apática. Tenho certeza que a parentada no fundo deve se sentir orgulhosa dos seus relatos sejam verdadeiros ou fantasiosos, aumentados ou diminuídos. Bem legal e esse seu cunhado, einh?! Puta que pariu hahahaha
    "J"

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    1. E constrangedor dizer isso, mas tirando um ou dois filhos, nenhum outro parente lê o que escrevo (assim imagino). Nem minha mulher. Até minha irmã, que me ajudou tanto fornecendo datas e nomes e lembrando alguns "causos", acessa mais o blog. Este é realmente o blog da solidão ampliada. O mote não foi escolhido à toa.
      Quanto à veracidade ou não dos textos, acredite, excluídas as minhas opiniões meio descompensadas, são 100% verdadeiros. Como já disse antes, a realidade pode ser muito mais louca que a mais delirante das ficções.
      Finalmente, falando do cunhado, ele é inspiração para dois dos diálogos de spamtar. Um já saiu, que é o do banheiro que vende cerveja. Essa conversa é verídica e aconteceu com ele e um sobrinho. Só acrescentei umas firulas.

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    2. Deve ser uma figuraça e acho legal o subtítulo, eu não tenho o menor talento pra isso, tanto que não me ocorreu nada pro meu. Ficou elas por elas, b%&@%@ por b%&@%&@.
      "J"

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