segunda-feira, 30 de setembro de 2024

PÃO, PÃO, QUEIJO, QUEIJO

 
Há muito tempo adotei um costume, uma norma aqui no blog, quase uma cláusula pétrea, que estabelece que “resposta grande vira post”. E este texto é mais um desses casos. O multitalentoso Fabiano Caldeira não se furta à oportunidade de expor suas opiniões e os valores que defende. E faz isso de forma bastante incisiva. Com ele é na base do “pão, pão, queijo, queijo”. Considero esse comportamento uma coisa muito positiva, pois, mesmo que não se concorde com o que diz ou pensa, não se pode dizer que não entendeu o que ele disse. Eu não sou assim, pois, mesmo que diga o que penso, sou escorregadio e gosto de “comer pelas beiradas”. Em outras palavras, um camaleão disfarçado.
 
 
A história começou assim: irritado com as mudanças forçadas e artificialíssimas de palavras e expressões para delas tirar qualquer referência a gênero (tipo “todes” em lugar de “todos” ou “todas”), defendi a visão de que mudanças na língua, qualquer língua, ocorrem naturalmente, nunca de forma impositiva. E citei o uso hoje normal de palavras chulas por crianças pequenas.
 
Incomodado com o que eu disse, o blogueiro Fabiano foi contundente em seu longo comentário (de que transcrevo apenas um pequeno trecho): “Se, para as pessoas que encaram com maior seriedade a vida, já está difícil, imagine para esses que crescem e viram adultos pensando que é maravilhoso ter linguajar vulgar, estudar pra quê, se temos a Internet? Batalhar pra quê, se o governo me dará um benefício depois? É essa a mensagem que eu sinto quando leio coisas assim”.
 
 
Lembrando que este post-resposta trata apenas do uso de palavrões e de como eu fui mudando meu pensamento em relação a isso, começarei contando um pouco da minha história, usando para isso trechos de posts anteriores (estou com preguiça de escrever). Bora lá.
 
Eu nasci e fui criado em uma família católica de hábitos simples e interioranos, religiosa sem ser carola. Gente normal, classe C ou D. Os valores que recebi e os exemplos que tive estavam consolidados nessa família. Não se usava linguagem chula ou vulgar. Palavras como “merda”, “bosta”, “mijo” e os atos correspondentes (“mijar”, “cagar”) eram considerados palavrões ou de mau gosto, vulgares. E continuam sendo. Ninguém nunca me ensinou isso, eu apenas pressentia o que não era tolerado naquela casa. E eu era super obediente e bem mandado (além, claro, de reprimido). Já contei esse caso aqui, mas vou repetir (transcrever):
 
Um dia, quando meu irmão já estava autorizado a sair sozinho pelas proximidades, fui com ele a algum lugar. Ao passar perto de dois meninos que discutiam, ouvimos um deles soltar um “filho da puta!”. Aquilo me mesmerizou, hipnotizou, pois era uma expressão tabu. Virei para meu irmão e disse: “Você viu o que o Alvinho falou? Ele disse F.P.!!!”.
 
Olha que coisa ridícula e hipócrita! Eu nem sonhava saber o significado de “puta”, mas sabia que aquilo era um palavrão. Se eu tivesse ficado calado, tudo bem, mas sempre me lembro e me impressiono com a hipocrisia e a carga de repressão sobre uma criança de sete ou oito anos contidas nesse episódio. (https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2016/07/infancia-f-p.html)
 
E foi assim que eu saí da infância, um menino tímido, introvertido, religioso e reprimido. Mas alguma coisa começaria a mudar, porque o defeito dos tímidos é observar, refletir, desejar e criticar o comportamento das pessoas ensolaradas. E foram pequenas mudanças de comportamento que começaram a acontecer ao atingir a puberdade e adolescência.
 
As sensações provocadas pela primeira masturbação me fizeram pedir perdão a Deus por ter feito aquilo. Apesar disso, furei com um prego a porta fina do banheiro só para ver minha tia tomando banho. Durante as missas dominicais, por querer ver as meninas que entravam na igreja, passei a ficar parado na porta de entrada. Racionalizando, entendi que aquilo não estava correto, pois ou sentava-me nos bancos próximos ao altar e prestava atenção na celebração ou parava de ir à missa. Parei.
 
A partir daí minha linguagem foi sendo “enriquecida” com todo tipo de palavrão que aprendia. E um dia, já com uns dezesseis anos e praticando natação, aconteceu algo que mudou minha vida. Transcrevendo:
 
Um dia, quando a presença de nadadores era 100% masculina, por absoluta falta do que fazer, resolvemos inspecionar o vestiário feminino. Deu-se ali, naquele momento, a revelação – FIAT LUX! – e a "luz" se fez: as portas e paredes dos boxes sanitários eram cobertas por desenhos, palavras e frases obscenas ou de conteúdo sexual, exatamente como no vestiário masculino! Aquela descoberta causou-me o mais puro encantamento: as mulheres diziam entre si o mesmo que dizíamos, nós os homens, uns para os outros!
 
Não tive dúvida: na primeira oportunidade, contei uma piada obscena para um grupo de meninas. Ante o protesto (light, diga-se) de uma ou outra, argumentei que, se falavam entre si dessa forma, por que não falar com os homens também? A partir daí, primeiro timidamente, depois de forma mais descontraída, passamos a usar uma linguagem menos “vigiada”.
 
Eu era um "soldado raso" da revolução (liberação) de costumes que estava acontecendo em todo o mundo e não me dava conta disso! No mítico ano de 1968 eu fiz dezoito anos e essas coisas já faziam parte do meu passado. (https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2014/09/nadando-contra-corrente.html)
 
Eu sei que ouvir um palavrão dito em voz muito alta assusta e repugna os espíritos mais sensíveis, pois a referência a práticas sexuais e a vulgaridade que o palavreado chulo carrega são características intoleráveis para pessoas muito tímidas, puritanas ou gentis.
 
Devo dizer que se enganam os que acreditam que eu sou um apologista da linguagem “boca suja”. Não sou (de verdade!). Como tenho temperamento de camaleão, me expresso de acordo com o ambiente em que estou. Por exemplo, se estiver conversando com um padre, é só ora pro nobis pra lá, aleluia pra cá e amém (bazinga!). E, quando converso com pessoas mais velhas que eu (o que está cada vez mais difícil de acontecer), jamais falo um palavrão, pois entendo que devo respeitar a diferença de comportamentos aprendidos em épocas distintas. É o caso de minha sogra.
(https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2014/12/anticonstitucionalissimamente.html)
 
Fui pai com 26 anos, com a cabeça cheia de teorias e muitos questionamentos sobre as convenções sociais que era obrigado a cumprir. Sempre bem mandado, nunca deixei de cumpri-las, mas sempre as critiquei, contestei ou desprezei. Hoje minha conversa corriqueira é forrada de palavrões, mesmo que eu nunca me lembre de sua conotação sexual. Para mim, "filho da puta" pode ser elogio ou exclamação raivosa, mas jamais associada à mãe do elogiado ou agredido.
 
Por isso, o menino que não falava palavrões liberou para seus filhos o uso irrestrito de vocabulário chulo e vulgar, justamente para tirar dessas palavras o conteúdo sexual que as fez surgir. Mas sempre alertei que há pessoas que se sentem agredidas ao ouvir “tijoladas” ditas por alguém. E citei que uma linguagem “descontraída” não deveria ser utilizada com qualquer pessoa, especialmente as mais velhas. E eles entenderam isso e sempre agiram dessa forma.
 
Penso que há um vigor nas palavras de baixo calão que as ditas “eufônicas” não têm. As palavras chulas “gritam”, enquanto aquelas recomendadas pelas boas maneiras apenas “sussurram” ou dizem à meia voz. Essas palavras carregam em si uma “energia potencial” muito grande, uma força expressiva bruta de tal forma, que, ao serem usadas, liberam emoção pura, quase atômica. Fico pensando que, por dizerem respeito a comportamentos ou secreções (excreções?) orgânicas que a sociedade acostumou-se a esconder, condenar ou evitar – por puramente animais e instintivos (longe, portanto, da razão) – acabam funcionando como catarse. Essa força explosiva que carregam quando usadas agressivamente acaba sendo preservada mesmo quando utilizadas de forma amistosa ou ironicamente.
(https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2014/12/anticonstitucionalissimamente.html)
 
Para mim, mesmo que não seja de bom tom, falar palavrões é uma coisa meio catártica. Funcionariam como um fio-terra, colocando-nos de novo em contato com a Mãe Natureza. Penso que as palavras “fortes” nos provocam um safanão cerebral, devolvem-nos (ainda que inconscientemente) a percepção do que efetivamente somos: animais com processos cerebrais mais evoluídos, mas animais (e, por isso, instinto puro), em última análise. Eufemisticamente, diria que os palavrões e palavras correlatas são como que “rugidos e rosnados”.
(https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2014/12/anticonstitucionalissimamente.html)
 
Bem, eu preciso terminar este post cheio de costuras e colagens, e o que posso dizer resumidamente é que os costumes e a linguagem nunca param de evoluir e mudar (às vezes até com retrocessos), mas sempre de forma espontânea, nunca impositiva. E que o fato de crianças usarem palavrões não é certeza de que serão adultos incapazes. A única preocupação que todos precisam ter está contida nas palavras de São Paulo: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”. Que mais? Só.

 

6 comentários:

  1. Eu não disse que são adultos incapazes, eu disse que a própria família incentiva a um comportamento de marginalidade porque fecha portas a algumas oportunidades boas e construtivas porque todo mundo fala palavrão, mas não porque é bonito, então ninguém se sente à vontade em quem faz desse vocabulário algo banal em sua rotina.
    Você vai entender isso quando ouvir suas gemininhas mandar você ir tomar no olho no seu cu, ou mandae chupar uma rola de dois metros. Quando elas começarem a falar isso para seus amigos, seus filhos e até para os vizinhos. Quando elas experimentarem maconha e olharem sua cara, prontinhas para falarem "o que é que foi, desgraça? Nunca viu um fumo, velho arrombado do caralho?"
    Espero que você dê boas risadas e então diga como a língua é vivida.

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    1. Linguagem menos reprimida não é sinônimo de falta de educação ou cortesia. Eu não uso palavrões para agredir ou chingar pessoas. O uso que deles faço é para expressar emoções. Como disse no texto, eu me comporto e tento falar em sintonia com quem estou conversando. Ensinei isso a meus filhos também. Em 2015 eu publiquei um texto engraçadíssimo sobre o uso de palavrões (não fui eu que escrevi) e ele mostra de forma bem humorada o que venho tentando dizer. O link é este, mas vou movê-lo provisoriamente para a data de hoje, só para facilitar a leitura. https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2015/02/o-direito-ao-foda-se-anonimo.html

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    2. Palavra correta: xingar; palavra errada: chingar. Vacilei.

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  2. Quanto à minha característica de me expressar, não sou tão espontâneo quanto pensa. O problema é que dou muita liberdade para me mostrar a pessoas que de repente só deveriam ter palavrinhas básicas oriundas de mim - em alguns casos, palavra nenhuma. Um abraço

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  3. Jotabê, apesar da nossa diferença de idade, somos muito parecidos e fomos criados também de forma parecida. Na minha infância, falar palavrão era pecado capital. Minha mãe uma evangélica carolíssima, meu pai também evangélico mas era um pouco mais suave. Cresci também com muita repressão o que me trouxe alguns problemas na adolescência que eu tive que resolver sozinho, buscar informações, pois em casa não havia diálogo sobre "certas coisas".
    Com meu filho já foi totalmente diferente. Olha, o teu post até me deu uma ideia de falar sobre isso lá na minha tag "Pais e Filhos" em ocasião próxima.
    Eu concordo com você. Falar palavrão é catártico, e não necessariamente, ele irá conotar uma má educação ou mesmo agressividade. Quando se leva aquela topada no mindinho, não adianta falar "ai, meu pé bateu..", não, um "putaqueopariu!!!!" é reconfortante. Na igreja um pastor aconselhava nessas situações dizer "Glória a Deus..." putz, tá falando sério, pastor? Esse conselho aí eu tinha muita dificuldade de seguir. Acho que só falei meu primeiro palavrão já adulto!!

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    1. Tive que rir com o "Glória a Deus". Tenho a impressão de uma diferença marcante entre os evagélicos e os católicos é o fato de sermos mais relaxados e debochados quando o assunto é religião ou expressões religiosas. Quando peço alguma coisa boba a alguém e sou atendido, levanto os braços e digo "Aleluia!", só de sacanagem. Ou "Deus te abençõe" apesar ter seríssimos problemas com minha falta de fé.

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