terça-feira, 17 de setembro de 2024

ATEU NÃO COMETE HERESIA

 
Tive muitas dúvidas se deveria ou não publicar um texto tão provocativo, mesmo que profundamente confessional e sincero (apesar da tradicional avacalhação jotabélica). Minha sorte é não conseguir alcançar o brilho intelectual dos comentários de Yuval Harari em seu livro “Sapiens”. Além disso, não pretendo convencer ninguém a mudar sua fé (nem sua descrença). Este texto reflete apenas o estágio atual da minha espiritualidade. E posso dizer que sinto saudade do tempo em que tinha fé.
 
Por isso, é importante deixar bastante claro que não vejo as religiões ou seus ensinamentos como algo ruim. Pelo contrário! O que realmente me incomoda é a defesa intransigente de certas interpretações feitas por alguns seguidores ao longo do tempo, pois nem Jesus nem Buda nem Maomé escreveram uma única palavra. Foram seus seguidores que “interpretaram” e registraram suas mensagens, muitas vezes moldando-as de acordo com sua falta de cultura, seus preconceitos pessoais e de acordo com o contexto de suas épocas.
 
É nesse processo de interpretação que, a meu ver, surgem os desvios, as intolerâncias e os mal-entendidos. Já pensou se um dos discípulos de Jesus fosse o Mala fala e outro fosse o padre Marcelo Rossi? Como seriam os evangelhos escritos por eles? Captou a sutileza? Afinal, talvez a essência dos grandes fundadores das religiões atuais seja, no fundo, muito mais simples e compassiva do que o que acabou sendo registrado ao longo dos séculos. E agora, deixando chorumelas, passemos ao texto principal.
 
 
Nasci em uma família católica à moda antiga, com uma fé simples e sem questionamentos, de ir à missa e comungar todo domingo, de fazer novenas, rezar terços, de acompanhar intermináveis procissões. Nos dias de semana minha avó, minha mãe e eu (então com uns sete anos) ajoelhávamos às 18 horas diante do rádio que transmitia a “Hora do Angelus”. Esse era o mundo em que cresci.
 
O defeito (só pode ser defeito!) é que eu comecei a refletir cedo demais sobre os textos bíblicos lidos durante a missa. Por conta de minhas dúvidas, ao entrar na adolescência comecei a ler tudo sobre religião, sobre religiões e cultos que encontrava pela frente. Fui a centro espírita e terreiro de umbanda. Minha busca por Deus era constante. Mas creio que meu gene da religiosidade sofreu alguma mutação, pois quanto mais suplicava a Deus para aumentar minha fé, mais eu a via indo embora.
 
E a situação se agravou definitivamente depois de ler o livro Sapiens. Dizendo em uma linguagem nada bíblica, aí a coisa fodeu de vez. E eu, um católico de missa dominical que até foi convidado a ser ministro da eucaristia, acabei por me tornar um ateu-católico ou católico-ateu (olha o gene da religiosidade atuando para não me afastar definitivamente da minha antiga fé!). Essa mudança teve um defeito colateral, pois substituí a crença pela superstição. Está bom até aqui? Continuemos.
 
Outro defeito grave, herético aos olhos de muitos, foi passar a criticar e duvidar dos textos do Antigo Testamento. Ele pode até ter sido inspirado por Deus, mas os livros que o compõem foram escritos há milhares de anos por um bando de gente bronca, sem cultura, inteligentes mas ignorantes, em um tempo em que uma simples doença de pele era considerada “lepra”. E é aí que entra meu ranço com a ideia de “terra prometida”.
 
Para começar, esse conceito foi introjetado em um povo que viveu escravizado no Egito durante algum tempo. Naquela época escravizar até mesmo uma população inteira era procedimento comum entre os vencedores de guerras entre países ou povos. Mas algum “inteligente” provavelmente entendeu que se houvesse uma intervenção divina ficaria mais fácil a população escravizada se rebelar, fugir ou o cacete que fosse. E melhor ainda era ter um deus exclusivo, poderoso, fodão, mais imponente que aqueles deuses idiotas com cara de chacal, hipopótamo, crocodilo e outras esquisitices.
 
E aí surgiu a “terra prometida”. Falando “sério”, o Deus do AT era muito mão de vaca, pois em vez de prometer uma terra com exuberantes florestas de cedros e praias paradisíacas (estou pensando no Líbano, mas se existiu um Noé, porque não uma frota de Noés para levar a moçada?), o Cara oferece um pedaço de deserto!. Mais barato, mas muito inferior. E, pior, já tinha sido objeto de usucapião por outras tribos! Isso só podia dar merda, e deu, claro, fazendo surgir um cu de gato que nunca termina.
 
Outra coisa que me incomoda muito era a crença daqueles caipiras de que Deus era exclusividade sua. São Paulo foi o primeiro a entender as vantagens da globalização. Não fosse ele, até hoje estariam sendo ignorados os bilhões de pessoas, de vários continentes e grupos étnicos que partilham da fé, da crença em Deus. Mas será mesmo que Ele existe?
 
Bom, para tranquilizar os leitores que ainda estão acordados, eu creio que sim, que é uma possibilidade simpática. Mas não aquele deus vingativo, passional, cruel e rancoroso do AT, não aquele feito (ou imaginado) à minha imagem e semelhança. Fica difícil aceitar isso, pois Ele poderia, por exemplo, ter a imagem e semelhança dos Neandertais. Ou vice versa.
 
Outra coisa que sempre critiquei sem verbalizar meu pensamento é a ideia do “pecado original”. Como assim? Quer dizer que a humanidade foi automaticamente condenada só por Adão e Eva terem desobedecido a Deus e comido o “fruto da árvore da ciência do bem e do mal”? (Gen 2, 17)?
 
Eu vejo a coisa da seguinte forma: como sou darwinista de coração, para mim Adão e Eva são apenas figuras alegóricas que não existiram tal como descrito na Bíblia. E se eles não existiram, certamente não comeram a “maçã envenenada”. E se não comeram, não há pecado original, nunca houve! Fico pensando em minhas netinhas condenadas já no nascimento por uma coisa que não cometeram. Puta sacanagem e covardia!
 
 
Agora, vamos examinar esta questão de outro ângulo. Suponhamos que o Deus do AT ficou mesmo muito puto por aquele “criado à sua imagem e semelhança” Tê-lo desobedecido. Mas pense comigo: qual pai normal pensaria em impedir e negar a seu filho oportunidade tão fundamental de adquirir conhecimento  ao comer o “fruto da ciência do bem e do mal”? O correto não deveria ser o inverso disso?
 
Eu sou um pai meia boca, relapso, mas tentei dar a meus filhos tudo o que pude – não só bens materiais, mas conhecimento formal de qualidade e, principalmente, Amor. Mas o Deus do AT não quis saber. Além de expulsar “de casa” aquele casal de crianças, ainda resolveu punir toda sua descendência com o “pecado original”. Para mim, esse comportamento espantoso é, na verdade, sinônimo de “rancor original”.
 
Para piorar ainda mais Sua imagem, mandou Seu filho unigênito descer à Terra para, com seu absurdo sofrimento, redimir a pisada no tomate feita por Adão e Eva milênios antes. Qual pai normal faria isso?
 
Bom, para terminar esta gororoba herética e debochada e tranquilizar os que creem em Deus, preciso dizer que não acredito no deus raivoso e vingativo do AT. Também não acredito em “terra prometida” nem em “pecado original”. Prefiro acreditar no Deus-amor, no Deus-Bondade, no Deus-perdão trazido por Jesus. E mesmo que seja hoje um ateu-católico, não vejo nenhum problema em aceitar ser J. Cristo o Filho de Deus, injustamente perseguido, torturado e crucificado por um bando de ignorantes fundamentalistas. Que têm seguidores ainda hoje, até mesmo em outras religiões. Fui.

2 comentários:

  1. Bom dia Jotabê.
    Para mim não há leitura
    ruim. Há sim idêntificação.
    O Eu fragmentado
    poesia e amo poesia e sempre será
    para mim um prazer ler.
    Mas literariamente os
    2 outros me prenderam na
    leitura. Sabe que leio ouvindo
    então o Confraria das Hienas
    me faz parecer uma pessoa doida,
    como vejo tantas na rua, rindo
    ou falando sozinha por estar
    de fone. Confesso que vi
    o Blogueiro Jotabê explícito
    no Meu nome é Ricardo.
    Vou responder a pergunta
    que me fez:
    Confraria das Hienas. Como gostei
    muito lerei o Confraria novamente para
    ter certeza que não perdi nada.
    Meu nome é Ricardo
    Eu Fragmentado.
    Sugestão:
    Se achar por bem,
    pie nessa origem no seu Blog
    Abraço
    CatiahoAlc.

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  2. Olha, religião e teologia já foram os assuntos que mais discuti por anos, devido minha herança protestante. Cheguei a dar aulas de teologia em um seminário, talvez por isso discutir esse tema me cause um certo fastio...porém, vamos lá.

    "Foram seus seguidores que “interpretaram” e registraram suas mensagens" - meio óbvio, né? Se os próprios não deixaram nada escrito, somente mesmo os que os seguiam poderiam escrever e cada um que escreveu teve um objetivo. No caso de Jesus, por isso mesmo existem 4 evangelhos canônicos (mas dezenas deles foram escritos) e os 4 possuem o toque do seu autor (que não são os autores aceitos pela tradição).
    Por anos estudei o Novo Testamento pelo enfoque de buscar o "Jesus histórico". Foram leituras muito interessantes, me abriu muito minha percepção sobre a figura humana de Jesus e também da sua figura divina.

    O Antigo Testamento é mais complexo do que o Novo, bem mais. é tão complexo que nem ouso aqui, neste espaço começar a falar dele, pois acabaria escrevendo muiiiitoooo e sem afirmar nada de forma categórica.

    Também não acredito em um Adão e Eva literais (muitos rabinos também não), mas o cristianismo precisa ver o casal como literal exatamente para encaixar a doutrina da Queda e do Pecado Original, mesmo que a visão judaica (dona dos textos!!) a interprete de forma diversa.

    Shalom.
    Axé.
    Adamastê

    Cuidado com a Cuca
    Que a Cuca te pega
    Te pega daqui
    Te pega de lá...

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ATEU NÃO COMETE HERESIA

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