terça-feira, 10 de setembro de 2024

COM ELE NÃO TINHA CORÉ CORÉ

 
Quando estava me preparando para o vestibular de engenharia da UFMG, uma das matérias que mais gostei de estudar foi Português, mais especificamente noções de literatura brasileira e origem da língua. Aquilo era filé para mim. Eu não estudava, eu lia com prazer o material didático fornecido. E foi assim que fiquei sabendo do jesuíta português Padre Antônio Vieira.
 
Transcrevendo: Padre Antônio Vieira é uma das figuras mais importantes da literatura e da história do Brasil, tendo desempenhado um papel fundamental na formação do pensamento e da cultura brasileira durante o período colonial. Sua obra literária, marcada principalmente pelos seus sermões e cartas, é um dos pilares da literatura barroca em língua portuguesa.
 
E o sujeito era bom mesmo, além de prolixo ao extremo. Fico imaginando o desconforto das pessoas daquela época ouvindo seus intermináveis sermões, cheio de citações em latim (que depois traduzia), onde passava a régua nas mazelas da sociedade colonial. Segundo sua biografia, escreveu mais de 200 sermões que, agrupados, resultaram em 16 volumes (hoje, a Igreja Católica chama os sermões proferidos após a leitura dos Evangelhos de "homilias").
 
O que mais chama a atenção é que numa época em que a Inquisição barbarizava os judeus, seus sermões abordaram questões sociais e políticas relevantes, tais como a defesa dos direitos dos povos indígenas e a abolição da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos na marra ao catolicismo) e os cristãos-velhos (aqueles cujas famílias eram católicas há gerações). Essa sua postura desagradou os colonizadores e muitos membros da Igreja.

O jesuita Antônio Vieira defendeu também a abolição da escravatura, além de criticar severamente os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição (criada e mantida pelos dominicanos, auto-intitulados "defensores da fé"). Em 1665 os inquisidores consideraram as suas proposições "heréticas, temerárias, mal soantes e escandalosas”. Ficou preso dois anos e foi proibido de ensinar, escrever ou pregar. Fico pensando que se vivesse nos tempos atuais seria chamado de “comunista”.

Transcrevendo: Vieira também é conhecido por sua visão profética e crítica da sociedade. Em textos como o "Sermão de Santo António aos Peixes", ele critica a corrupção, a ganância e a hipocrisia tanto dos colonizadores quanto da Igreja. Sua obra é marcada por uma profunda análise moral e social, que ainda ressoa na literatura e no pensamento brasileiro. 

Voltei a me lembrar dele graças a um trecho do “Sermão do Bom Ladrão” que alguém publicou no Facebook. Por ter um caráter atemporal, vou deixá-lo para o final. Antes disso, transcreverei algumas frases ditas por ele em seus sermões ou nas mais de quinhentas cartas que escreveu e que foram preservadas. Olhaí. 

A natureza e a arte curam contrários com contrários.

Dizem que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga.

É o amor entre os afetos como a luz entre as qualidades.

Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor.

No juízo dos males sempre conjeturou melhor quem presumiu os maiores.

O amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado.

O amor não é união de lugares, senão de vontades.

O amor que não é intenso não é amor.

O fogo pode-se apartar, mas não se pode esfriar.

O maior contrário de uma luz é outra luz maior.

O tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade.

O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito.

O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo.

Os olhos são as frestas do coração.

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba.

A ausência também se há de definir pela morte, posto que seja uma morte de que mais vezes se ressuscita.

O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive.

Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras.

A boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor.

Há homens que são como as velas; sacrificam-se, queimando-se para dar luz aos outros.

Muitos cuidam da reputação, mas não da consciência.

Quem quer mais que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

A ausência é o remédio do amor.

Somos o que fazemos. Nos dias em que fazemos, realmente existimos; nos outros, apenas duramos.

A nossa alma rende-se muito mais pelos olhos, do que pelos ouvidos.

A admiração é filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque admirados os homens das coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar, e isto é o que se chama ciência.

Amor e ódio são os dois mais poderosos afetos da vontade humana.

Não há alegria neste mundo tão privilegiada, que não pague pensão à tristeza.

Não basta que as coisas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os ditos que alegamos se chamam autoridade, por que o autor é o que lhe dá o crédito e lhe concilia o respeito.

Mais afronta a mesura de um adulador, que uma bofetada de um inimigo.

Três mais há neste mundo pelos quais anelam, pelos quais morrem e pelos quais matam os homens: mais fazenda; mais honra; mais vida. 

E agora o atualíssimo trecho do Sermão do Bom Ladrão, causa e motivo deste post:

Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros roubam debaixo de seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados. Estes furtam e enforcam.

8 comentários:

  1. Pelos escritos deixados, o Padre António Vieira, foi sem dúvida um homem de H grande. A sua obra é lida em todo o mundo.
    .
    Saudações amigas.
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    Poema: “” O Amor Acontece ““
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    1. Ele deixou uma produção vastíssima. Sua biografia demonstra sua imensa cultura e preocupações que hoje em dia seriam vistas por muitos com desconfiança.
      Aproveitando, seu poema é lindo.

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  2. Viajei aqui na frase "A natureza e a arte curam contrários com contrários", belo post. Passando no seu cantinho para visitar e colocar a leitura em dia, então teve overdose de comentários sim senhor rsrs sempre faço isso nos blogs que eu adoro.
    Até qualquer dia! :)

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  3. Literatura era a minha matéria preferida no Ensino Médio (quando fiz ainda se chamava "Segundo grau"). Lembro que meu livro didático trazia alguns textos de sermões de Vieira. Fiquei fã na hora.

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    1. Recuando ainda mais, no "meu tempo" era assim: grupo escolar (1ª à 4ª série), ginasial (5ª à 8ª série) e colegial ou "científico" (três anos). Havia ainda o curso de "Formação" (equivalente ao colegial), destinado às meninas que queriam dar aulas no grupo escolar (senti o bafo de um dinossauro no meu pescoço!).

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  4. Jotabê!!!
    Terminei de o
    Confraria.
    Ri muito.
    Você escreve de forma
    fantástica.
    Abraço.
    CatiahoAlc.

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    1. Fico muito feliz que tenha se divertido, mas já aviso que o de poesias é mais sombrio, pois a maioria foi escrita quando eu estava precisando desabafar.

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