quarta-feira, 6 de abril de 2022

DESFILE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Estava eu posto em sossego... Mentira! Se existe uma coisa que eu não tenho agora é sossego, pois a ansiedade esguicha para todos os lados como se fosse água da fonte luminosa da Praça Raul Soares, em BH.

Quando eu era bem pequeno, o então namorado de minha tia às vezes nos levava à noite para ver a fonte dessa praça, que ficava mudando de cor. Para mim, o vermelho era a cor da groselha que começava a jorrar (e que eu queria mas não podia beber!).
 
Voltando à ansiedade, estava tentando redescobrir uma informação preciosa que deixei de copiar ao encontrá-la, quando me deparo com versos sensacionais de um poema desconhecido do Drummond (o que não significa nada, pois desconheço integralmente a obra do poeta itabirano. Mudei o foco da busca e encontrei este maravilhoso poema, que serve para dar qualidade a este blog de quinta categoria.


O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.
Como remédio entornado
em camisa de doente;
como na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo: fiquei mais moço.
Já não tenho cicatriz.
Vejo-me noutra cidade.
Sem mar nem derivativo,
o corpo era bem pequeno
para tanta insubmissão.
E tento fazer poesia,
queimar casas, me esbaldar
nada resolve: mas tudo
se resolveu em dez anos
(memórias do smoking preto)
O tempo fluindo: passos
de borracha no tapete,
lamber de língua de cão
na face: o tempo fluindo.
Tão frágil me sinto agora.
A montanha do colégio.
Colunas de ar fugiam
das bocas, na cerração.
Estou perdido na névoa,
na ausência, no ardor contido
O mundo me chega em cartas.
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
Mais longe, mais baixo, vejo
uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.
Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho mãos experientes.
Tenho calças experientes.
Tenho sinais combinados.
Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
Tudo foi prêmio do tempo
e no tempo se converte.
Pressinto que ele ainda flui.
Como sangue; talvez água
de rio sem correnteza.
Como planta que se alonga
enquanto estamos dormindo.
Vinte anos ou pouco mais,
tudo estará terminado.
O tempo fluiu sem dor.
O rosto no travesseiro,
fecho os olhos, para ensaio.

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