Meu amigo Pintão era um dos meus fornecedores de cultura inútil durante a década de 1980. Um dia comentou entre risos sobre um de seus livros, justamente por ter um subtítulo bizarro. O livro era “Por Que Me Ufano De Meu País” e este era o subtítulo: “Right Or Wrong, My Country”. Para quem “se ufanava de seu país”, a frase em inglês era uma espécie de piada non sense, pois além de ridícula, denotava a submissão do autor a um idioma estrangeiro. Que mais posso dizer sobre isso? Foda-se.
Há cem anos, por ocasião do quarto centenário
da chegada dos conquistadores portugueses a Pindorama, o conde de Afonso Celso
publicou o "Por Que me Ufano de Meu País". O livro, dedicado aos
filhos, visava a despertar neles e, por extensão, em toda a juventude
brasileira, um ilimitado amor à pátria. O lema "right or wrong, my
country", em inglês mesmo, foi colocado na primeira página, logo abaixo do
título. Êxito editorial, o livro e, mais especificamente, a palavra ufanismo
passaram a denotar o patriotismo acrítico, ingênuo, incondicional.
Por que deveriam os brasileiros ufanar-se de
seu país? O conde apresentou 11 motivos para a superioridade de nosso país em
relação aos outros. Os cinco primeiros retomavam a tradição edênica inaugurada
por Pedro Álvares Cabral, continuada pelo autor dos "Diálogos das
Grandezas do Brasil" e mantida até hoje: a grandeza territorial, a beleza
da terra (a cachoeira de Paulo Afonso, o Amazonas, a baía do Rio de Janeiro, a
floresta virgem), as riquezas naturais, a amenidade do clima e a ausência de
calamidades naturais.
Os outros tinham a ver com o caráter do povo
(bom, pacífico, caridoso, ordeiro, sensível, sem preconceitos), as relações
cavalheirescas e generosas com os outros países e a história do país. O
brasileiro, segundo o conde, devia ufanar-se por morar em um país privilegiado,
dom da providência, superior a todos os outros. O que ainda não tínhamos,
poderíamos conquistar, transformando-nos eventualmente na primeira potência do
orbe.
Cem anos depois do livro do conde, às
vésperas do quinto centenário do evento que entre nós muitos ainda chamam de
descoberta, já pululam os novos ufanistas, oficiais ou semi-oficiais, ingênuos
ou espertos, beneficiados todos pela eficiência dos modernos meios de
comunicação. A onda do oba-oba ufano-turístico só fará aumentar nos próximos
meses. Convém, por isso, retomar os motivos de ufanismo do conde e examinar sua
pertinência cem anos depois.
Alguns deles continham inverdades, como a
afirmação de termos sido o primeiro país autônomo da América Latina ou de nunca
termos sido derrotados (o conde esqueceu-se da derrota de Ituzaingó, que acabou
com a pretensão de incorporar o Uruguai a nosso território). Outros continham
tolices, como dizer que desfrutávamos liberdades desconhecidas em outras nações
(não fosse o conde muito católico, poder-se-ia talvez pensar que se referia à
liberdade de pecar). Ou afirmar que os ex-escravos se incorporaram à população
em perfeito pé de igualdade.
Quanto a considerar a natureza como motivo de
orgulho, poderíamos responder com Machado de Assis que ela não é obra nossa e
que, portanto, não nos cabe dela nos orgulharmos. Mas temos que acrescentar
que, se não fizemos a natureza, muito a desfizemos.
Nossa grandeza física continua intacta,
apesar do receio de alguns do que chamam de cobiça internacional sobre a
Amazônia. Também ainda não temos terremotos, vulcões e furacões. Mas as belezas
naturais, o paraíso em que Deus nos colocou, já foram quase todas destruídas: as
florestas foram e continuam a ser queimadas, as praias, as baías (a da
Guanabara à frente), as suaves brisas e os céus foram poluídos. Só mesmo os
milagreiros autores do hino encomendado pelo ministro do Esporte e Turismo para
o quinto centenário conseguem beber água fresca nas cacimbas do sertão.
As riquezas naturais, por sua vez, foram
vítimas de predação incansável e ininterrupta.
A bondade, caridade e doçura de nosso caráter
não impediram que construíssemos uma das sociedades mais desiguais e injustas
do globo, na qual os descendentes dos escravos, contradizendo a afirmação do
conde sobre as condições de igualdade de sua incorporação, são discriminados e
ocupam os estratos mais baixos da hierarquia social. Não impediram também que
nos tornássemos campeões de violência na casa e na rua, que os massacres se
generalizassem nas grandes cidades, que a tortura - depois de ser rotina no
tratamento de escravos - se integrasse à prática policial e, por 20 anos,
tivesse a cobertura das próprias Forças Armadas.
Primeira potência do orbe? Talvez no futebol
e no Carnaval. Mas é preciso perguntar se um gol de Pelé ou uma Copa do Mundo
valem a Copa que também ganhamos da desigualdade social e da pobreza; se um
carnaval de Joãosinho Trinta ou um desfile da Mangueira valem os 15% de
brasileiros analfabetos, os 35% com menos de quatro anos de de educação, os 36%
infectados por parasitas. Nossa história nos últimos cem anos? Deles, 41 foram
de governo oligárquico sem participação popular. Mais 15 foram de ditadura civil.
Outros 21 de ditadura militar. Sobram apenas 23 de democracia assustada e
tímida, que tem sido muito lenta e pouco eficaz na solução do problema da
desigualdade.
Ao final do quinto século, é preciso admitir
que nossos melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa
incapacidade de torná-los realidade. A retórica do ufanismo só serve para
encobrir nossa frustração como povo e como nação.
Povo e nação que, como disse Renan, só
existem devido à realização de grandes obras comuns no passado e da vontade de
fazer outras tantas no presente.
Os brasileiros que julgam não ser este o país
de seus sonhos, que acham não haver nada a celebrar no quinto centenário,
enfrentarão a agitação ruidosa do oba-oba ufanista e aproveitarão a data para
uma profunda autocrítica e para a busca de novos rumos que nos dêem no futuro
melhores razões para nos orgulharmos de nós mesmos. Nesse distante futuro
talvez deixemos de ser o país do futuro que hoje desapontaria Stefan Zweig.
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