sexta-feira, 1 de abril de 2022

CONTAGEM REGRESSIVA

Meu black dog é ensinado e quase não me incomoda, mas às vezes precisa sair um pouco. E nesses passeios sempre me puxa para lugares estranhos, sombrios. Hoje, bem cedo, ele trouxe sua guia para que eu o levasse a passear, fazendo-me ter pensamentos e visões também estranhas, também sombrias.

Como um burocrata entediado a quem sequestraram todos os sonhos, o celular começa a tocar para me dizer o que desde a madrugada insone eu já sabia: está na hora de acordar.

Seguindo orientação médica, fico sentado por instantes na beira da cama para equilibrar os fluidos corporais.

Levanto-me e caminho até a cozinha. Pego os remédios prescritos pelo cardiologista e pelo endocrinologista e os engulo com um pouco de água.

Troco de roupa, calço os chinelos e vou de carro à padaria - que fica a pouco mais de uma quadra de distância. O isolamento imposto pela pandemia fez com que eu deixasse de ir a pé até lá.

Na volta, tomo banho, troco de roupa novamente e, para evitar toda possibilidade de contaminação, espero que minha mulher me ajude a tirar os pães do saco de papel que os embala.

Faço café, tomo café e dirijo-me ao computador para acompanhar as estatísticas do blog e ler as notícias mais recentes. E assim continua o dia, com suas imutáveis rotinas, as mesmas tarefas, a mesma falta do que fazer, todo dia, tudo sempre igual, fazendo com que eu me assemelhe a um presidiário que marca na parede da cela os dias já cumpridos de sua pena.

Mas minha prisão é diferente, pois nas paredes invisíveis da minha guantánamo pessoal eu vou apagando em um calendário invertido os dias já vividos do total que me resta de vida. De qual vida, afinal?



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