O texto a seguir foi “capturado” por mim no
Facebook. Foi originalmente publicado no jornal “Estado de Minas” em 12/12/2017
e seu autor é o poeta e cronista Fabrício Carpinejar, agora morador de BH. Mesmo
não fazendo o tipo bairrista, gostei tanto que resolvi postá-lo no blog.
Afinal, um pouco de qualidade literária de vez em quando nunca é demais mal.
Olhaí.
"Mineiro gosta de vento. O vento em Belo
Horizonte é pássaro sem gaiola, é ave solta.
Mineiro continua acreditando na janela
aberta, na brisa do entardecer, que o clima vai refrescar de noite.
Não é fã de ar-condicionado. O vento deve
estar livre para surpreender as pálpebras, jamais enjaulado em um controle
remoto.
Mineiro respeita a chuva, para lavar as
mágoas e levar as tristezas embora.
Mineiro gosta de beber, bem mais que o
carioca, porque não precisa de praia para ter motivo.
Mineiro gosta de morro, pois a ladeira treina
o suspiro. E subindo ele encontra as melhores paisagens.
Todo mineiro, no alto de um prédio, procura a
sua casa. E aponta com o orgulho para os filhos: é lá que moramos.
Mineiro gosta de juntar doce com salgado,
queijo com goiabada, para se deliciar com os contrastes.
Mineiro gosta de trem, a ponto de construir
ferrovias na fala. Não acaba uma conversa, desembarca de uma conversa.
Mineiro gosta da loucura do futebol. Comemora
o título duas vezes: uma em nome de seu clube e outra para debochar do
adversário.
Mineiro gosta de família. A família não tem
fim. Até hoje não conheci a família inteira de minha esposa. Sempre aparece
alguém novo nas festas – um primo, um tio, uma tia.
Mineiro gosta de quem cumprimenta olhando nos
olhos. As palavras têm queixo erguido e honra.
Mineiro gosta de agradar com comida. Sempre
leva um lanche para repartir com os colegas no emprego – um bolo, pãozinho
caseiro, um doce de mãe.
Mineiro gosta de sobremesa, para recomeçar o
almoço.
Mineiro gosta de expressões compridas, para
estalar a língua no céu da boca.
Mineiro gosta de namorar. Quando o casamento
dá certo, ele chama de namoro. Quando o casamento dá errado, ele chama de
casamento mesmo.
Mineiro gosta de dizer tudo joia, vive
brilhando os olhos em sua joalheria de lembranças.
Mineiro gosta da benção de pessoas mais
velhas.
Mineiro gosta de trânsito, de ver as pessoas
passando das janelas dos carros e das varandas dos prédios.
Mineiro gosta de praças, e praças que tenham
o coração de um coreto.
Mineiro gosta de atravessar o silêncio
estranho das avenidas, no retorno das festas.
Mineiro gosta de tirar os sapatos para longe
quando chega em casa – os sapatos são cachorros dormindo debaixo dos móveis.
Mineiro gosta de emendar programas, juntar
saídas, prolongar passeios, para criar saudade do lar.
Mineiro gosta de comemorar aniversário por
vários dias. Se é para envelhecer, que seja com vontade.
Mineiro gosta de velório, para elogiar os
seus mortos e recomendá-los aos anjos.
Mineiro gosta de batizado, para reclamar que
foi muito longo.
Mineiro gosta de trabalho, para passar
adiante um telefone fixo aos amigos. Ele ainda conserva o orgulho do cartão de
visita.
Mineiro gosta de piadas inspiradas em fatos
reais.
Mineiro gosta de fazer o caminho mais longo
para provar que não é preguiçoso. Vai devagar pelo prazer da estrada.
Mineiro gosta de acordar cedo no fim de
semana, só para contrariar as normas.
Mineiro gosta de sorvete para a língua
disputar corrida com o sol.
Mineiro gosta de torresmo, para testar os
dentes.
Mineiro gosta de cafezinho passado na hora,
para se sentir visita.
Mineiro gosta de se explicar direitinho,
nunca é direto.
Mineiro gosta de filmes sem legendas, nada de
ironias, sarcasmo, ambiguidades. É ou não é.
Mineiro gosta do choro de uma viola, para
homenagear os galos dos quintais da infância.
Mineiro gosta de ir a reunião de condomínio,
só para ninguém fazer fofoca dele.
Mineiro gosta de santos, para não
sobrecarregar Deus e socializar os pequenos milagres.
Só um mineiro para entender o quanto a
capital Belo Horizonte é o interior de Minas."
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