quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

CERVEJA QUENTE É QUE MATA A SEDE

A avó de quatro dos meus primos era italiana e veio para o Brasil acompanhada pelo marido, três filhos e a mãe. Não sei em que data isso ocorreu, mas imagino ter sido antes da queda do meteoro que extinguiu os dinossauros. Pouco tempo depois o marido resolveu voltar, talvez por não ter aqui encontrado nada que o atraísse. A italiana não quis saber, resolveu ficar, deu uma banana para o marido e meteu a cara no trabalho. Tendo tino comercial e determinação, ficou rica, mas, até onde sei, nunca mais voltou ao país de origem.

Para ganhar algum dinheiro, minha mãe começou a costurar para ela, para a filha solteirona e para minha tia, sempre me levando quando ia à sua casa. Nessa época ela já era velha, eu devia ter uns sete a dez anos e não ia nada com sua cara, pois era grossa, brava, falava enrolado e me criticava por ser enjoado para comer. Além disso, com seus filhos e com a mãe já caduca, usava o dialeto de sua região, pouco se lixando se havia pessoas que não entendiam o que estava dizendo. Mesmo sendo novo, tinha a sensação de que fazia isso para criticar sua nora (minha tia), minha mãe, a mim ou a quem quer que estivesse por ali. E isso me incomodava, me deixava meio puto.

Muito bem. Um dia recebeu uma carta comunicando que um terreno de sua propriedade seria desapropriado, pois uma rodovia passaria justamente nesse local. Precisava, portanto, ir à Itália para receber o valor correspondente à desapropriação. Não teve dúvidas, pegou um navio e se mandou. Ficou por lá um ou dois meses, hospedada na casa de uma amiga de infância. Quando voltou, trouxe a grana escondida em um cinto que usou por baixo da roupa. Mas, para mim, veio principalmente abarrotada de brinquedos espetaculares para os netos, presentes para os filhos, noras e até para minha mãe.  Em um gesto de grande generosidade, deu-me um também. Uma bolinha de gude vermelha. Velha sovina, filha da puta!

Tudo parecia ter terminado bem, até receber uma carta da amiga que a hospedara na Itália, informando que iria visitar um filho que morava na África. Por isso, daria uma paradinha no Brasil, faria uma escala para rever a amiga “querida”. Esse pitstop durou seis meses. E agora é que vem o motivo desta lembrança: a amiga não bebia água nem para tomar remédio. No início, para agradá-la e retribuir a hospedagem, compraram garrafas e mais garrafas de vinho. Como a velha não dava pista de já estar arrumando as malas, substituíram o vinho pela cerveja, mais em conta. Que a italiana encarou tranquilamente, até resolver ir embora. Infelizmente, não sei se bebia quente ou gelada.  Mesmo assim, vou apostar que bebia na temperatura ambiente. E que devia ser xingada em português por estar dando esse preju na velha rica e chata.


Em 1973 eu era estagiário de uma empresa que estava construindo parte de uma fábrica de cimento na região metropolitana de BH. Uma das obras eram dois silos geminados, cada um com vinte metros de diâmetro e altura de uns setenta metros. Posso estar equivocado com essas medidas, pois, afinal, já se passaram 44 anos. Independente das dimensões reais, o fato é que eram dois cilindrões altíssimos. Para sua construção a empresa utilizou o método de "formas deslizantes", sistema em que as formas de contenção do concreto são movimentadas continuamente através de macacos hidráulicos. Como o sistema não permite parada e recomeço, os trabalhos são realizados durante as 24 horas do dia, até sua conclusão. No caso dos silos mencionados, foram gastos vinte e um dias de concretagem ininterrupta.

Como não poderia deixar de ser, para a construção das formas e seu deslizamento são subcontratadas empresas altamente especializadas na realização desses serviços, ficando sob responsabilidade da construtora o fornecimento, aplicação e acabamento do concreto na quantidade e velocidade requeridas. Nessa obra, a subcontratada foi uma empresa com matriz na Alemanha. Os técnicos e operadores do sistema eram alemães. E é aí que entra a cerveja. Eles também não bebiam água, talvez por medo de não ser adequadamente tratada. O resultado é que durante os 21 dias, engradados e mais engradados de cerveja quente (temperatura ambiente) foram consumidos na obra, sem que nenhum erro ou acidente tenha acontecido. Eles só ficavam altos por subir junto com o equipamento


Lembrando essas histórias, fico tentado a pensar que cerveja quente é que mata a sede. Bom, talvez seja necessário que a cerveja não tenha a frescura das artesanais, com suas "notas de frutas vermelhas", seu armazenamento em tonéis de carvalho do Haiti ou coisa parecida. Para matar a sede, imagino que a cerveja tenha que ser daquelas baratas (mas boas). Talvez eu esteja enganado, pois cerveja não é meu fraco. O que sei é que de todas  as que existem hoje no mercado, as melhores para mim são as proibidas. Mesmo que não tenham esse rótulo.

6 comentários:

  1. Muito bom esse texto. Que, se não repleto de sabedoria, ao menos, repletos de sábios, a velha italiana e o pessoal da obra, que não bebiam água.
    Quando não se tem certeza da boa procedência da água - a italiana por estar em país tropical, os peões alemães pelo mesmo motivo e por estarem em local de obra sem poço artesiano certificado -, o negócio é tomar cerveja, que é fervida e pasteurizada. De cólera, tifo, amebíase e caganeira, nenhum bebedor de cerveja morre.
    E você, JB, não tomava nenhuma com eles, não?

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    1. Engraçado, nunca pensei na hipótese da velha italiana não beber água por precaução! É uma boa hipótese. Quanto aos alemães, eles não davam papo para ninguém. Faziam o serviço, trocavam de turno e tchau. E na época eu bebia cachaça (mas só em festa).

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  2. Além do mais, a cerveja era quente! Só me lembro de que os engenheiros ficaram "horrorizados" com essa aberração.

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  3. Se tiver um tempinho, dê uma lida nesse artigo do G1, a respeito de um documentário da Discovery sobre as contribuições da cerveja para a humanidade. Uma das contribuições foi justamente essa, ser substituta da água contaminada em épocas menos higiênicas da humanidade, como a Idade Média. Reproduzo aqui o trecho, para ver os outros benefícios, leia o artigo na integra:
    Purificação da água

    No passado, especialmente no período medieval, a cerveja funcionava como um substituto da água. Naquela época, muitas fontes aquíferas eram repletas de doenças graves como cólera e peste negra. Por isso, muitos religiosos – na época, os principais fabricantes de cerveja – recomendavam ela no lugar da água. Eles acreditavam que forças divinas havia purificado a bebida, mas na verdade era a fervura e a fermentação que haviam feito isso. “Depois que a cerveja fermenta, ela tem um pH muito baixo, que faz com que micro-organismos patogênicos não se desenvolvam”, explica Alfredo. Acredita-se que muitas civilizações se salvaram do extermínio por beberem cerveja no lugar de água poluída."
    http://g1.globo.com/especial-publicitario/somos-todos-cervejeiros/noticia/2016/03/conheca-contribuicoes-da-cerveja-para-o-mundo.html

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    1. Quer dizer que o negócio era, além de comer como um frade, também beber como.
      Quanto ao "tempinho", mesmo não garantindo que tenha ainda muito tempo de vida, o que mais tenho é tempo durante o dia. Vou conferir.

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  4. Aproveitando esse seu "tempinho", dê só uma olhada nesse curta de animação, A Casa dos Pequenos Cubos.

    https://www.youtube.com/watch?v=M1kET8r6Lrw

    Só não pode chorar, mas pode, se quiser.
    Depois você comenta o que achou, talvez o transforme até numa postagem.

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4