Embora minha mulher tivesse ficado visivelmente
apavorada com as palavras da amiga, fiquei na minha, pois me auto-encaixei no
perfil de “pessoa sensível e tímida”,
mesmo que minha timidez tivesse sido deixada no meio do caminho há muito tempo. Mas a definição
era pertinente. Terminou a consulta dando uma boa sugestão: eu demonstrava
entender o que era falado e conseguia ler jornais, revistas, livros escritos em
português, sinal que continuava pensando nessa língua. Ao verbalizar ou
escrever o que tentava dizer é que a algaravia e as garatujas não identificadas
se manifestavam. Nesse caso, talvez fosse bom que eu e minha mulher
aprendêssemos Libras, a língua dos
sinais; eu, para me comunicar e ela, para me compreender. Aceitamos a sugestão, começamos a aprender e tivemos alguns resultados promissores, mesmo que paliativos.
Isso também serviu para nos aproximar mais, para que prestássemos mais atenção
um no outro. E ainda não tínhamos ido a um psiquiatra.
Mas a solução do enigma (ou sua definitiva
falta) quem acabou descobrindo fui eu mesmo. Tive a ideia de escolher uma única
palavra bem básica e escrevê-la num pedaço de papel, Pensei em “mulher”, mas o
sinônimo poderia ser “fêmea”, como gostam de dizer algumas pessoas que conheço.
Da mesma forma, “homem” poderia significar
“macho” (alguns, nem tanto assim). Pensei em “medo”, mas minha expressão verbal
poderia transformar em “receio” ou “pavor”. Pensando dessa forma, acabei por
escolher uma das palavras que deve estar no big bang da origem de todas as
línguas, mesmo as mais antigas: escrevi no papel a palavra “mãe” e saiu “matka”. Joguei no Google Tradutor e pedi
para identificar o idioma. Para minha surpresa, a língua que estava falando e
escrevendo era polonês! Mas eu nunca estive na Polônia, nunca saí do Brasil e
sou, ou melhor, era monoglota!
Não contei essa descoberta para ninguém. Aí escrevi no meu amigo tradutor Googa (já estou íntimo) a expressão “línguas estranhas”. De posse da
tradução, copicolei no Google e saiu isso: “Glossolalia
é um fenômeno de psiquiatria e de estudos da linguagem, em geral ligado a
situações de fervor religioso, em que o indivíduo crê expressar-se em uma língua
por ele desconhecida, por ele tida como de origem divina.”
Como sou um católico meia-boca, não acreditei na sopinha de ter recebido o sopro do Espírito Santo. Além do mais, se fosse isso mesmo, eu deveria também ser capaz de me expressar em minha própria língua! Continuando a pesquisar, descobri que poderia estar apresentando outro “fenômeno da psiquiatria”, a Xenoglossia, “um suposto fenômeno metapsíquico no qual uma pessoa seria capaz de falar idiomas que nunca aprendeu, como, por exemplo, uma pessoa começar a falar alemão fluentemente sem nunca ter aprendido alemão, ser alemão ou conviver com alemães”.
Ao ler a expressão “metapsíquico”, pensei logo em coisas esotéricas, curandeirismo, homeopatia. Além do mais, essa explicação era capenga, pois não previa o fato de alguém também escrever em outra língua.
Como sou um católico meia-boca, não acreditei na sopinha de ter recebido o sopro do Espírito Santo. Além do mais, se fosse isso mesmo, eu deveria também ser capaz de me expressar em minha própria língua! Continuando a pesquisar, descobri que poderia estar apresentando outro “fenômeno da psiquiatria”, a Xenoglossia, “um suposto fenômeno metapsíquico no qual uma pessoa seria capaz de falar idiomas que nunca aprendeu, como, por exemplo, uma pessoa começar a falar alemão fluentemente sem nunca ter aprendido alemão, ser alemão ou conviver com alemães”.
Ao ler a expressão “metapsíquico”, pensei logo em coisas esotéricas, curandeirismo, homeopatia. Além do mais, essa explicação era capenga, pois não previa o fato de alguém também escrever em outra língua.
Para encurtar a história, fomos a um
psiquiatra, que diagnosticou que eu estou mesmo em surto psicótico, receitou-me
uns remédios tarja preta pesados, daqueles mata-cavalo, que me deixam meio
grogue, falando ainda mais enrolado. Mas até agora não voltei a me expressar na
“última flor do Lácio”.
O que isso significa, eu não sei. Talvez
vivamos em uma Matrix, talvez alguém, por engano, tenha “carregado” em minha
mente o arquivo de língua polonesa, danificando ou provocando um conflito com o
arquivo original. Mas não me queixo, pois essa situação delirante combina com o
que vinha sentindo nos últimos tempos. Esse mistério eu ainda consegui
solucionar. Mas não quero entregar o ouro para ninguém, senão algum cretino
acabará por me chamar de “polonês”.
Nas festas e aniversários a que somos convidados, quando ouço alguém contando suas vantagens e realizações de Pinóquio, faço logo um comentário em voz alta, quando digo as barbaridades que quiser. O “rei” se assusta, os demais convidados riem e eu me divirto pra caramba. Se a festa tem churrasco e me oferecem picanha com aquela capa de gordura amarela, sangrando tanto que quase dá para ouvir ainda um mugido, mostro um pedaço de carvão que mantenho ao alcance da mão – é assim que eu gosto. Se começam a tocar música sertaneja, levanto-me e saio de perto.
Nas festas e aniversários a que somos convidados, quando ouço alguém contando suas vantagens e realizações de Pinóquio, faço logo um comentário em voz alta, quando digo as barbaridades que quiser. O “rei” se assusta, os demais convidados riem e eu me divirto pra caramba. Se a festa tem churrasco e me oferecem picanha com aquela capa de gordura amarela, sangrando tanto que quase dá para ouvir ainda um mugido, mostro um pedaço de carvão que mantenho ao alcance da mão – é assim que eu gosto. Se começam a tocar música sertaneja, levanto-me e saio de perto.
Criei também um blog super-restrito, quase um
cripto-blog, ao qual, no momento, só meus filhos tem acesso (pensando bem, nem
precisava todo esse cuidado!) e onde este texto ficará alojado. Nele tenho colocado as bobagens que vinha escrevendo,
resgatando e-mails e cartas antigas, pois não quero cometer o mesmo erro do velho Odorêncio.
Você, meu caro leitor do futuro, deve estar
se perguntando como está lendo este texto em português. Eu poderia encerrar agora com uma frase
reflexiva, que te fizesse pensar que “há
mais coisas entre o céu e a terra que supõe nossa vã filosofia”, mas penso que devo esclarecer esse último mistério: eu escrevo direto no computador - e sai polonês.Copio e colo no Google Tradutor. Lanço a tradução para português no Word, passo o revisor de ortografia, faço uma revisão geral e – Voilà! – estou com o texto do jeito que quero, na língua que abandonei
Só sei que não estranharei tanto se permanecer definitivamente assim. Afinal, se sempre me senti um pouco estrangeiro, agora posso dizer que sou mesmo um. E isso não parece tão ruim.
Só sei que não estranharei tanto se permanecer definitivamente assim. Afinal, se sempre me senti um pouco estrangeiro, agora posso dizer que sou mesmo um. E isso não parece tão ruim.
Esse texto tem que sofrer uma revisão geral, pois a segunda parte foi escrita antes da primeira. Por isso, há problemas de "continuismo" a resolver.
ResponderExcluirCorrendo o risco de parecer um mané, o quanto há de verdade nessa série? Nem que seja a vontade de xingar meio mundo de forma impune?
ExcluirEssa é uma história meio louca. Outro dia, assim do nada, pensei na história do cara que fala polonês. Não tinha nada em mente, só achei graça da maluquice. Fomos à uma comemoração do aniversário de um conhecido, em um restaurante. Calhou de ficar perto do filho desse sujeito, menino com uns 18 anos. Comentei com ele sobre essa maluquice e ele ficou empolgadíssimo, querendo saber o final. Disse que não tinha final e que não sabia nada da história. estava mais interessado em escrever outra "lamúria" jotabélica, sobre o quanto é mais interessante conversar com meus filhos e outros jovens como eles, em lugar de ficar escutando gente que só conta vantagem, fala de futebol, come carne mal passada e ouve música sertaneja (gente muito próxima, diga-se). O problema é que sou velho, sou pai, não posso sair com a turma nerd que eu curto. Então, sou um ET que desceu na terra. Aí resolvi juntar tudo, fazendo referência à outra crônica que escrevi, aquela do Odorêncio, como se o narrador fosse o filho que mandou jogar as memórias do pai no lixo. A referência ao "príncipe russo" é real e foi-me contada pelo próprio, meu pai. Aí tive que resolver um monte de coisas: o estrangeiro descobriria ou não que língua estava falando? Qual língua deveria ser escolhida? Como ele iria fazer?, etc. etc. Resumindo: é uma colcha de retalhos com verdade e ficção misturadas.
ExcluirSobrou uma crase na frase "Fomos"à" uma..."
ExcluirMuito bacana a série! Quando comentou comigo, achei que sairia dessa ideia do polonês mais alguma piada ruim, mas, para minha surpresa, o resultado foi esse conto (crônica?) kafkiano bem bom de ler.
ResponderExcluir"Procevê"! O tema ainda rendeu um "making of" e uma versão "as duras realidades da vida", cujo título é "O mundo é dos jovens". Legal que tenha gostado.
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