Entregaram-me um pacote de fotografias e documentos antigos com a incumbência de escaneá-los. No meio daquele grupo de rostos já conhecidos, muitas vezes em imagens desfocadas, veio um retrato antigo, bem antigo, de um casal na faixa dos trinta a quarenta anos.
A foto trazia algumas informações: é uma foto posada e teria sido tirada e revelada por profissional, pois, apesar dos danos provocados pela má conservação e guarda descuidada, tem boa nitidez. As roupas, a sombrinha da mulher, o bigode retorcido masculino e até mesmo a cadeira onde se apoia o homem, revelam que provavelmente foi tirada bem no início do século XX. Essa impressão é reforçada pelo semblante sério e sem sorrisos do casal, que olha para algum lugar, em diagonal à câmera. No verso da foto nenhum nome, data ou outra informação. Só sei que é uma foto linda.
Perguntei à minha mulher de quem se tratava e fiquei sem resposta, pois ela também não conhecia. Enquanto esperava o scanner fazer seu movimento de vai e vem para captura de outras imagens, fiquei divagando.
Como teriam se chamado? Talvez tivessem nomes como Ofélia e Joaquim. Ou, seriam Leonora e Onésio?
E os filhos? Vários, claro. Talvez onze, sem contar o bebê que teria morrido com dois meses, vítima de escarlatina.
Seria um fazendeiro de muitas terras, um laborioso padeiro ou apenas um honrado dono de armazém?
A virtuosa senhora seria especialista em quindins e broas de fubá, mas especialmente conhecida por sua galinha ao molho pardo, que ela mesma fazia questão de escolher e matar, cuidando para que o sangue fosse todo aparado em vasilha contendo suco de limão.
Teriam sofrido com doenças graves, contagiosas ou de difícil tratamento?
Certamente iam à missa das seis horas da manhã, para melhor aproveitar o domingo, dia adequado para visitar os irmãos e primos.
No final da vida, como estariam, como teriam morrido? O velho com o coração estourado e a mulher pouco tempo depois, de desgosto? Ou, pelos muitos anos de dura labuta diária, teria a mulher morrido tísica, em um acesso mais severo de hemoptise? Teria o velho morrido dormindo, quase sem reconhecer mais os filhos e parentes?
Uma foto, vários enigmas. Pedra Roseta sem Champollion, estela com caracteres desconhecidos. Imagem fixada no papel. Sais de prata na revelação, ouro puro na beleza do retrato.
Meu pai tem na sala de casa ainda hoje o seu velho autorretrato de jovem. Quando criança não sabia que era ele, ficava pensando quem era aquele moço de cara pálida vigiando as nossas artimanhas com seus olhos de Mona Lisa. Nunca entendi por que ele mantinha/mantém aquele retrato, aquele estranho Dorian Gray.
ResponderExcluir"J"
Faça a si mesma essa pergunta daqui a vinte anos. talvez você entenda. Ou não.
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