sexta-feira, 18 de novembro de 2016

UM ESTRANGEIRO - 1/3

Até hoje eu ainda não sei se estou acordado ou no meio de um pesadelo que teima em não acabar. Todos os dias eu me deito esperando que “amanhã” eu acorde como antes de tudo ter acontecido. A casa agora está mais silenciosa, como se ninguém quisesse me incomodar ou perturbar meu sono. Mas eu estou acordado! Ou, pelo menos, acredito estar.

Minha mulher não mais exibe sua antiga e despreocupada tagarelice. Quando nossos olhares se cruzam, percebo que além da permanente preocupação, exibe uma expressão discretamente ressentida, como se intimamente acreditasse que a culpa de tudo fosse minha. Nunca tentei lhe dizer, mas hoje percebo que ela pode ter razão. Quando alguém telefona, eu a vejo conversar em voz baixa, contida, como se não quisesse que eu ouvisse o que está dizendo, provavelmente alguma coisa a meu respeito, o que sempre me deixa constrangido.

Ninguém sabe o que aconteceu; há algumas explicações sensatas e plausíveis, mas nenhuma conclusiva ou, pelo menos, não ainda. Tudo o que posso fazer é deixar um relato detalhado desses momentos para que um leitor, no futuro, teça suas teorias e explicações. A mim, basta o registro dos fatos, tal como me lembro de terem acontecido.

Na véspera daqueles acontecimentos, estava entretido em registrar minhas lamúrias, tal como vinha fazendo já havia algum tempo. Sentia-me meio deprimido, com pensamentos negativos recorrentes e uma sensação estranha de solidão. Por isso, sentei-me à frente do computador e comecei. Lenta, quase cautelosamente, meus dedos indicadores começaram a pressionar as teclas do computador. Não sabia ainda o que iria digitar, apenas sabia sobre o que desejava escrever. Na tela do Word lia-se uma frase incompleta: “Às vezes me sinto como se fosse um marciano”.

Pensativo, fiquei olhando o monitor, observando o cursor que pulsava no final da palavra “marciano”, como se o sinal intermitente fosse um convite para continuar ou uma expectativa da próxima ação, fazendo-me lembrar do comportamento do nosso Scooby, que ficava balançando ritmadamente a cauda enquanto olhava fixamente para mim, sem saber se teria ou não a atenção que procurava. Velho Scooby!

Achei essa comparação muito bizarra e me lembrei de que meu pai também datilografava seus textos esquisitos usando apenas dois dedos. Visualizei o velho batucando uma Remington cor de cobre comprada em um leilão. Tenho notado que, mesmo que o criticasse na época, estou cada vez mais parecido com ele. Continuei.

Às vezes me sinto como se fosse um marciano que por uma infelicidade qualquer foi degredado para a Terra, pois, cada vez mais, tenho sentido um não pertencimento à comunidade onde vivo.

(Hoje eu sei que isso não é culpa de ninguém, é apenas um misto de solidão existencial, de recusa de alguns padrões sociais estabelecidos ou, sei lá, até mesmo de frescura.)

Creio que isso surgiu ainda na infância, quando era rejeitado ou sofria bullying de vizinhos e colegas de escola. Talvez por uma invencível timidez, tinha dificuldade em criar laços de amizade mais consistentes, duradouros. Esse pode ser o motivo de ter tido vários “melhores amigos” ao longo da vida. Quando qualquer um se afastava geograficamente ou pelo surgimento de interesses não comuns, a amizade se rompia definitivamente, como aconteceu com o noivo de uma conhecida. Depois de me casar e essa moça terminar o noivado, meu amigo resolveu mexer com drogas. A partir daí, eu não suportava quando ia nos visitar. Sentava-se no chão, tentava passar a imagem de descolado, de doidão, mas eu só queria saber de minha mulher e de nosso filho. Não tinha mais saco para papos cabeça.

(Creio que herdei a timidez de meu pai. Um dia, contou-me ter sido chamado na juventude de “príncipe russo” por algumas moças, que teriam confundido sua timidez paralisante com esnobismo e altivez)

Essa sensação de deslocamento foi acentuada progressivamente, depois que resolvi beber menos e mais espaçadamente. Percebi ou tive a sensação de que meus conhecidos e parentes olhavam-me cada vez mais com estranhamento e alguma ironia, como se eu fosse um desmancha-prazeres e estivesse traindo suas certezas, estragando sua diversão, pelo simples fato de permanecer sóbrio em um ambiente de gente bêbada. Pudera!, afinal, como conviver com alguém que não fuma, não bebe, não gosta de picanha mal passada, não assiste nem entende de futebol e, pecado maior, não gosta de jogar conversa fora sentado em um barzinho da moda ou com os cotovelos lustrando o balcão de um botequim copo sujo? Só um estrangeiro teria um comportamento tão fora da curva!

(O maior susto que já tomei foi ouvir de um senhor que ele e meu pai, colegas de serviço, cansaram de fazer serenatas na época em que, por necessidade, meu pai começou a trabalhar no interior, vindo para casa só nos fins de semana. Será possível que o velho Odorêncio tinha tantas cartas escondidas na manga? Talvez fosse mais estrangeiro que eu. Afinal, tinha sido um “príncipe russo”!. O que conteria aquela papelada que guardava em uma caixa de camisa? Seus textos sempre foram tão estranhos e indigestos que, quando morreu, mandei jogar tudo fora sem pensar duas vezes. Deveria ter lido aquelas folhas datilografadas! Talvez esse assunto das serenatas, tão escondido, tivesse sido ali narrado. Mas, ele era tão irascível, de tão difícil convivência!)

Hoje, aborrece-me conversar com pessoas de minha faixa etária, pois não tenho nenhum interesse em comentar sobre futebol, incomodam-me os relatos de conquistas financeiras, a permanente certeza de terem sempre razão, as pílulas douradas que nada mais são que placebos. Ninguém lê nada que não seja futebol, ninguém se interessa por alguma cultura. Prefiro conversar com gente jovem de mente aberta, particularmente com meus filhos, tão cultos e engraçados como inteligentes e equilibrados. Mas é aí que a solidão mais se manifesta, pois, por mais que eu queira, não pertenço a esse grupo, a essa turma, sou como um estrangeiro que não fala a língua do país onde está. A diferença de idade é a verdadeira barreira, talvez a principal causa do “choque de gerações”.

Estava empolgado com as palavras que fluíam sem muito esforço quando minha mulher me chamou. Lembrou-me que eu precisava tomar banho e me aprontar para o baile de formatura de um sobrinho, pois seria aquela festa...

Sem alternativa, desliguei o computador e fui me arrumar. Comentei com ela que estava pensando em ir de taxi, pois queria comemorar a formatura em alto estilo: pretendia tomar o último porre de minha vida. Ela me olhou com ironia e um pouco de incredulidade, mas nada disse. E fomos nos divertir, sem nunca sonhar com a mudança radical que logo aconteceria em nossas vidas.


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