Até hoje eu ainda não sei se estou acordado
ou no meio de um pesadelo que teima em não acabar. Todos os dias eu me deito
esperando que “amanhã” eu acorde como antes de tudo ter acontecido. A casa
agora está mais silenciosa, como se ninguém quisesse me incomodar ou perturbar
meu sono. Mas eu estou acordado! Ou, pelo menos, acredito estar.
Minha mulher não mais exibe sua antiga e despreocupada
tagarelice. Quando nossos olhares se cruzam, percebo que além da permanente preocupação,
exibe uma expressão discretamente ressentida, como se intimamente acreditasse
que a culpa de tudo fosse minha. Nunca tentei lhe dizer, mas hoje percebo que
ela pode ter razão. Quando alguém telefona, eu a vejo conversar em voz baixa, contida,
como se não quisesse que eu ouvisse o que está dizendo, provavelmente alguma
coisa a meu respeito, o que sempre me deixa constrangido.
Ninguém sabe o que aconteceu; há algumas explicações sensatas e plausíveis, mas nenhuma conclusiva ou, pelo menos, não ainda. Tudo o que posso fazer é deixar um relato
detalhado desses momentos para que um leitor, no futuro, teça suas teorias e explicações.
A mim, basta o registro dos fatos, tal como me lembro de terem acontecido.
Na véspera daqueles acontecimentos, estava
entretido em registrar minhas lamúrias, tal como vinha fazendo já havia algum
tempo. Sentia-me meio deprimido, com pensamentos negativos recorrentes e uma sensação
estranha de solidão. Por isso, sentei-me à frente do computador e comecei. Lenta,
quase cautelosamente, meus dedos indicadores começaram a pressionar as teclas do
computador. Não sabia ainda o que iria digitar, apenas sabia sobre o que desejava
escrever. Na tela do Word lia-se uma frase incompleta: “Às vezes me sinto como se fosse um marciano”.
Pensativo, fiquei olhando o monitor,
observando o cursor que pulsava no final da palavra “marciano”, como se o sinal intermitente fosse um convite para
continuar ou uma expectativa da próxima ação, fazendo-me lembrar do
comportamento do nosso Scooby, que ficava balançando ritmadamente a cauda
enquanto olhava fixamente para mim, sem saber se teria ou não a atenção que
procurava. Velho Scooby!
Achei essa comparação muito bizarra e me lembrei
de que meu pai também datilografava seus textos esquisitos usando apenas dois
dedos. Visualizei o velho batucando uma Remington cor de cobre comprada em um
leilão. Tenho notado que, mesmo que o criticasse na época, estou cada vez mais
parecido com ele. Continuei.
Às
vezes me sinto como se fosse um marciano que por uma infelicidade qualquer foi
degredado para a Terra, pois, cada vez mais, tenho sentido um não pertencimento
à comunidade onde vivo.
(Hoje eu sei que isso não é culpa de ninguém,
é apenas um misto de solidão existencial, de recusa de alguns padrões sociais
estabelecidos ou, sei lá, até mesmo de frescura.)
Creio
que isso surgiu ainda na infância, quando era rejeitado ou sofria bullying de
vizinhos e colegas de escola. Talvez por uma invencível timidez, tinha dificuldade
em criar laços de amizade mais consistentes, duradouros. Esse pode ser o motivo
de ter tido vários “melhores amigos” ao longo da vida. Quando qualquer um se
afastava geograficamente ou pelo surgimento de interesses não comuns, a amizade
se rompia definitivamente, como aconteceu com o noivo de uma conhecida. Depois
de me casar e essa moça terminar o noivado, meu amigo resolveu mexer com
drogas. A partir daí, eu não suportava quando ia nos visitar. Sentava-se no
chão, tentava passar a imagem de descolado, de doidão, mas eu só queria saber
de minha mulher e de nosso filho. Não tinha mais saco para papos cabeça.
(Creio que herdei a timidez de meu pai. Um
dia, contou-me ter sido chamado na juventude de “príncipe russo” por algumas
moças, que teriam confundido sua timidez paralisante com esnobismo e altivez)
Essa
sensação de deslocamento foi acentuada progressivamente, depois que resolvi beber
menos e mais espaçadamente. Percebi ou tive a sensação de que meus conhecidos e
parentes olhavam-me cada vez mais com estranhamento e alguma ironia, como se eu
fosse um desmancha-prazeres e estivesse traindo suas certezas, estragando sua
diversão, pelo simples fato de permanecer sóbrio em um ambiente de gente bêbada.
Pudera!, afinal, como conviver com alguém que não fuma, não bebe, não gosta de
picanha mal passada, não assiste nem entende de futebol e, pecado maior, não
gosta de jogar conversa fora sentado em um barzinho da moda ou com os cotovelos
lustrando o balcão de um botequim copo sujo? Só um estrangeiro teria um
comportamento tão fora da curva!
(O maior susto que já tomei foi ouvir de um
senhor que ele e meu pai, colegas de serviço, cansaram de fazer serenatas na
época em que, por necessidade, meu pai começou a trabalhar no interior, vindo
para casa só nos fins de semana. Será possível que o velho Odorêncio tinha tantas
cartas escondidas na manga? Talvez fosse mais estrangeiro que eu. Afinal, tinha
sido um “príncipe russo”!. O que conteria
aquela papelada que guardava em uma caixa de camisa? Seus textos sempre foram tão
estranhos e indigestos que, quando morreu, mandei jogar tudo fora sem pensar
duas vezes. Deveria ter lido aquelas folhas datilografadas! Talvez esse assunto
das serenatas, tão escondido, tivesse sido ali narrado. Mas, ele era tão
irascível, de tão difícil convivência!)
Hoje,
aborrece-me conversar com pessoas de minha faixa etária, pois não tenho nenhum
interesse em comentar sobre futebol, incomodam-me os relatos de conquistas
financeiras, a permanente certeza de terem sempre razão, as pílulas douradas
que nada mais são que placebos. Ninguém lê nada que não seja futebol, ninguém
se interessa por alguma cultura. Prefiro conversar com gente jovem de mente
aberta, particularmente com meus filhos, tão cultos e engraçados como
inteligentes e equilibrados. Mas é aí que a solidão mais se manifesta, pois,
por mais que eu queira, não pertenço a esse grupo, a essa turma, sou como um
estrangeiro que não fala a língua do país onde está. A diferença de idade é a
verdadeira barreira, talvez a principal causa do “choque de gerações”.
Estava empolgado com as palavras que fluíam
sem muito esforço quando minha mulher me chamou. Lembrou-me que eu precisava
tomar banho e me aprontar para o baile de formatura de um sobrinho, pois seria
aquela festa...
Sem alternativa, desliguei o computador e fui
me arrumar. Comentei com ela que estava pensando em ir de taxi, pois queria
comemorar a formatura em alto estilo: pretendia tomar o último porre de minha
vida. Ela me olhou com ironia e um pouco de incredulidade, mas nada disse. E
fomos nos divertir, sem nunca sonhar com a mudança radical que logo aconteceria em
nossas vidas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário