Há uns vinte anos, recebi um pequeno poster que trazia o trecho de uma carta endereçada ao presidente dos Estados Unidos, escrita por um chefe indígena americano. Havia tanto lirismo e poesia naquelas palavras que tive vontade de ler o texto na íntegra. Comentei sobre isso com meu então concunhado e ele me emprestou um livro daqueles que você termina a leitura arrasado.
O título em português era "Enterrem meu coração na curva do rio", uma escolha meio capenga para traduzir a beleza do título original ("Bury My Heart at
Wounded Knee"). O livro trazia relatos das sacanagens, traições, promessas nunca cumpridas e destruição sistemática de várias tribos indígenas da "Terra de Marlboro", mas não continha a tal carta.
Hoje lembrei-me disso e resolvi procurar na web. Descobri o texto e fiquei sabendo de que talvez não seja a versão original (o que não me espantaria). Aliás, existe a hipótese de que tenha sido apenas um "discurso" feito pelo cacique Seattle. O registro escrito teria sido feito por quem ouviu aquelas palavras. Não importa. O que sei é que gostaria de tê-las escrito, pois são impregnadas de muito lirismo e poesia. Por isso, vamos a esse belíssimo discurso:
O grande chefe de
Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe
assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte,
pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.
Vamos, porém,
pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá
com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no
que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem
confiar na alteração das estações do ano.Minhas palavras
são como as estrelas que nunca empalidecem.
Como podes comprar ou vender o céu, o calor
da terra? Tal ideia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do
resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é
sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa,
cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são
sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas
árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal,
quando - depois de morto - vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos
nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos
parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o
cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os
sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem - todos
pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington
manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande
chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver
confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos
considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque
esta terra é para nós sagrada.
Esta água brilhante que corre nos rios e
regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos
a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos
que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os
eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai
de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios
transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa
terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos
nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um
irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o
nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um
forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A
terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai
embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa.
Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a
sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe -
a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas,
vendidas como ovelha ou miçanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra,
deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A
vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez
isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do
homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na
primavera ou o tinir das asas de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um
selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E
que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de
noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada
compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície
de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia,
ou recendendo a pinheiro.
O ar é precioso para o homem vermelho, porque
todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem. O homem branco parece não perceber o ar que
respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido.
Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para
nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento
que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu
último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada,
feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear
o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.
Assim, pois, vamos considerar tua oferta para
comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco
deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e desconheço que possa ser de
outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria,
abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em
movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro
possa ser mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas
para o sustento de nossa vida.
O que é o homem sem os animais? Se todos os
animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque
tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado
entre si.
Deves ensinar a teus filhos que o chão
debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham
respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da
parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a
terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra - fere os filhos da terra. Se os
homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao
homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas
estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado
entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o
homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que
ele fizer à trama, a si próprio fará.
Os nossos filhos viram seus pais humilhados
na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da
derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados
e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos
últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmo uns invernos, e
nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm
vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará, para chorar sobre os
túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o
nosso.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia
e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos
ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco
venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues,
agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas
não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o
homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à
terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez
mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de
morrer uma noite, sufocado em teus próprios desejos.
Porém, ao perecerem, vocês brilharão com
fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum
desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem
vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como
será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as
brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas
colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá
acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à
caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos
com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite
a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que
oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã.
Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por
serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será
para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver o
nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho
tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar
acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e
praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua
mãe.
Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós
a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta
terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força, o teu poder e todo o
teu coração - conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De
uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem
mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.