Tive um grande amigo que era muito culto e
ótimo papo. Um dia, comentou que no início da humanidade, ainda na ausência de
escrita, os ensinamentos religiosos eram divulgados oralmente, de forma cantada
e cadenciada, para facilitar sua memorização. A explicação me pareceu
fascinante, totalmente lógica e, claro, fruto de uma grande cultura. O
complicador é que, segundo o ditado popular, "quem conta um conto
aumenta um ponto".
Mesmo tendo o máximo de cuidado na transmissão dos ensinamentos, mesmo
cantando, mesmo marcando o ritmo, imagino que muita história, muitos números,
muitos ensinamentos sagrados e muitas lembranças foram "atualizados” por diferentes narradores
ao longo do tempo. Se pensarmos em textos surgidos há cinco mil anos, aí é que
a coisa fica mais complicada.
Por isso, vejo com muita reticência os textos bíblicos, especialmente os do
Antigo Testamento. Sua reprodução ao longo dos séculos certamente deve ter
causado várias alterações (bem intencionadas) na forma original, especialmente
na fase de transmissão não escrita, oral. Por isso também, quando às vezes leio
ou ouço durante a missa algum desses textos, minha vontade é gritar “TRUCO!”,
pela total improbabilidade de algum evento ter acontecido tal como está
registrado.
Algum tempo atrás, talvez por conta das novelas bíblicas da Record e da divulgação do
filme "ÊXODO: Deuses e Reis", fiquei pensando em Moisés e nas
“Tábuas da Lei”. Para receber a mensagem de Deus, Moisés subiu ao monte Horeb -
ou Sinai, para os íntimos - onde ficou orando (talvez se pudesse dizer
"horando") durante “quarenta
dias e quarenta noites”, ao fim dos quais desceu com os Dez Mandamentos entalhados em duas
placas de pedra. Bacana, não?
Não! Pelo menos, para mim... Um cara criado na corte do faraó (se essa informação é verdadeira, lógico) devia
saber ler, mas talvez não tivesse habilidade com cinzéis, buris, etc. Então,
os quarenta dias que Moisés passou orando e jejuando devem ter sido gastos para
entalhar o decálogo sagrado. Então, minha viagem é essa e esse é o
mote desta gororoba que está sendo lida.
Como sou católico (nem parece, né?), acredito
na origem divina dos ensinamentos religiosos. Mas, caramba, para mim, Deus não
precisou por a mão na massa para gravar na pedra o código de conduta que
destinou aos judeus!
Outros exemplos bacanas:
O Livro de Mórmon:
Segundo informações extraídas da
Wikipédia, O Livro de Mórmon é um "volume de escrituras sagradas
comparável à Bíblia" e faz um "registro da comunicação de Deus com os
antigos habitantes das Américas" além de "conter a plenitude do
Evangelho eterno".
De acordo com o relato do próprio
livro, ele foi escrito por muitos profetas antigos, pelo "espírito de
profecia e revelação". Suas palavras, escritas originalmente em placas
de ouro, foram resumidas por um profeta-historiador chamado Mórmon e por
este motivo o livro tem este nome até hoje.
Estes registros teriam sido mantidos
por profetas que viveram entre esses povos, até que Mórmon, um desses profetas,
fez uma compilação desses anais num único volume, gravado em placas de metal.
Morôni, filho de Mórmon, recebeu essas placas e acrescentou nas mesmas o seu
próprio registro, e ocultou-as segundo orientação que acreditava ser divina.
Na narrativa de Joseph Smith Jr,
o restaurador da Igreja de Jesus Cristo, apelidada de
"mórmon", Morôni visitou-o em 21 de
setembro de 1823, instruindo‑o a respeito do antigo registro e da
tradução que seria feita para o inglês. Smith também conta que quatro anos mais
tarde as placas finalmente lhe foram entregues, traduzindo-as em seguida,
acreditando ter auxílio divino.
Bom, aqui cabe uma pergunta: para que "placas
de ouro", cara-pálida? Sinal inequívoco da riqueza dos ensinamentos
recebidos? O pior da história é que o Joseph Smith não ficou com as placas;
devolveu-as ao "anjo". Fala
sério, Joe, você poderia ter assumido ser o verdadeiro autor do Livro
de Mórmon, mesmo que inspirado por sabe-se lá quem!
O Livro dos Espíritos:
Segundo Allan Kardec (pseudônimo
de Hippolyte Léon Denizard Rivail) um
espírito o teria escolhido para reunir e publicar os ensinamentos da
doutrina espírita, originalmente composta por 501 perguntas e respostas
organizadas por ele, a partir de mensagens passadas pelos espíritos a três ou
quatro moças adolescentes de uma mesma família.
Universo em Desencanto:
Para mim, esse é o mais bizarro. Minha mulher
aprendeu a dirigir com um sujeito que, além de instrutor, divulgava também a
"Cultura Racional". Assim,
além das aulas de direção, minha Amada recebeu uns panfletos com ilustrações a
cores que davam algumas dicas dessa "magnífica" seita ou o que quer
que seja. O que chamou mais minha atenção foi um desenho mostrando uma
pedra transformando-se em um animal.
Preciso dizer mais alguma coisa? Lógico que sim! Saca só:
"Universo em Desencanto é
uma obra de 1000 livros com fundamentos centrados nos conhecimentos da
chamada Cultura Racional, enviadas por uma entidade
denominada Racional Superior, habitante do chamado Mundo
Racional" (Olha
só, um ET espírita!).
"Esses ensinamentos teriam sido
ditados através de seu aparelho, o Sr. Manoel Jacintho Coelho" (sem sacanagem,
uma religião criada por brasileiro não passa nenhuma credibilidade!).
"Segundo o livro, trata-se de um
conhecimento de retorno da humanidade ao seu "verdadeiro mundo de
origem", o Mundo Racional, por meio da uma Energia Racional, que
faria a ligação do ser humano ao Mundo Racional".
O que posso dizer, para finalizar essa
cascata, é que, aparentemente, os fundadores de algumas religiões e seitas não
tiveram peito de assumir que foram eles próprios os criadores
dos ensinamentos transmitidos, mesmo que inspirados por Deus, anjos ou,
sei lá, até por seres extraterrestres. Talvez intuíssem ou soubessem
que "ninguém é profeta em sua própria terra", como disse
Jesus (nesse, eu acredito!).