Quando criei este blog e imaginei reverenciar
autores ou textos que me deixam de queixo caído, eu creio que pensava no Rubem
Braga. Desde que li o livro “Duzentas Crônicas Escolhidas” eu virei fã
incondicional do cara.
Se eu conseguisse escrever alguma coisa com
um décimo do lirismo, humor e sensibilidade que encontrei em suas crônicas, eu
me sentiria o super-homem, o fodástico. Natural, portanto, que eu quisesse que
outras pessoas conhecessem a incrível beleza de seus textos. Se eu
pudesse,transcreveria esse livro inteiro.
Mas sugiro para quem ainda não o leu, que
compre um e leia compulsivamente, até acabar (porque não dá vontade de parar).
E, depois, leia tudo de novo, agora devagar, redescobrindo textos que fazem bem
para a mente, para o coração de quem tem um mínimo de inteligência e
sensibilidade. A crônica transcrita a seguir é desse jeito e foi publicada
quando o escritor estava com 64 anos (coincidentemente, minha idade atual. E a
coincidência é só essa). Olhaí
Conta-se
na família que, quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro, esse relógio
já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tempo
não ficava bem levar. Hoje, meu Deus, carregam até uma lâmpada de 60 velas, até
o bocal da lâmpada, e deixam aquele fio solto no ar.
Há
poucos anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu,
não é de admirar que ele tresande um pouco. Há uma corda para fazer andar os
ponteiros, outra para fazer bater as horas. A primeira é forte, e faz o relógio
se adiantar: de vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio
está adiantado quinze ou vinte, minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro.
Em
matéria de som vamos muito mais adiante. É comum o relógio marcar, digamos,
duas e meia, e bater solenemente nove horas. "Esse relógio não diz coisa
com coisa", comenta um amigo severo. Explico que é uma pequena disfunção
audiovisual. Na verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei
de querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o velho
relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida é suave, como costumam ser a desses
Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da
infância. Às vezes tenho a ilusão de ouvir, no fundo, o murmúrio distante e
querido do Itapemirim.
Que
outros sons me chegam da infância? Um cacarejar sonolento de galinhas numa
tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma porteira na
fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da
noite. E o som distante dos bailes do Centro Operário, com um trombone de vara
ou um pistom perdidos na madrugada.
Sim,
sou um amante da música, ainda que desprezado e infeliz. Sou desafinado,
desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro dia fiquei perplexo
ouvindo uma discussão de jovens sobre um som que eu achava perfeito e eles
acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e outros males estranhos.
Meu
amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, Alegria dos Homens;
nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu
baque final, como na fazenda do Frade, já me bastam. Ou então a batida desse
velho relógio, que marcou a morte de meu pai e, vinte anos depois, a de minha
mãe; e que eu morra às quatro e quarenta toda manhã, com ele marcando cinco e
batendo onze, não faz mal; até é capaz de me cair bem. (Abril/1977)
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