terça-feira, 2 de junho de 2015

OS SONS DE ANTIGAMENTE – RUBEM BRAGA



Quando criei este blog e imaginei reverenciar autores ou textos que me deixam de queixo caído, eu creio que pensava no Rubem Braga. Desde que li o livro “Duzentas Crônicas Escolhidas” eu virei fã incondicional do cara.

Se eu conseguisse escrever alguma coisa com um décimo do lirismo, humor e sensibilidade que encontrei em suas crônicas, eu me sentiria o super-homem, o fodástico. Natural, portanto, que eu quisesse que outras pessoas conhecessem a incrível beleza de seus textos. Se eu pudesse,transcreveria esse livro inteiro.

Mas sugiro para quem ainda não o leu, que compre um e leia compulsivamente, até acabar (porque não dá vontade de parar). E, depois, leia tudo de novo, agora devagar, redescobrindo textos que fazem bem para a mente, para o coração de quem tem um mínimo de inteligência e sensibilidade. A crônica transcrita a seguir é desse jeito e foi publicada quando o escritor estava com 64 anos (coincidentemente, minha idade atual. E a coincidência é só essa). Olhaí


Conta-se na família que, quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro, esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tempo não ficava bem levar. Hoje, meu Deus, carregam até uma lâmpada de 60 velas, até o bocal da lâmpada, e deixam aquele fio solto no ar.

Há poucos anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu, não é de admirar que ele tresande um pouco. Há uma corda para fazer andar os ponteiros, outra para fazer bater as horas. A primeira é forte, e faz o relógio se adiantar: de vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio está adiantado quinze ou vinte, minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro.

Em matéria de som vamos muito mais adiante. É comum o relógio marcar, digamos, duas e meia, e bater solenemente nove horas. "Esse relógio não diz coisa com coisa", comenta um amigo severo. Explico que é uma pequena disfunção audiovisual. Na verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei de querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o velho relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida é suave, como costumam ser a desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da infância. Às vezes tenho a ilusão de ouvir, no fundo, o murmúrio distante e querido do Itapemirim.

Que outros sons me chegam da infância? Um cacarejar sonolento de galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma porteira na fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes do Centro Operário, com um trombone de vara ou um pistom perdidos na madrugada.

Sim, sou um amante da música, ainda que desprezado e infeliz. Sou desafinado, desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro dia fiquei perplexo ouvindo uma discussão de jovens sobre um som que eu achava perfeito e eles acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e outros males estranhos.

Meu amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, Alegria dos Homens; nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu baque final, como na fazenda do Frade, já me bastam. Ou então a batida desse velho relógio, que marcou a morte de meu pai e, vinte anos depois, a de minha mãe; e que eu morra às quatro e quarenta toda manhã, com ele marcando cinco e batendo onze, não faz mal; até é capaz de me cair bem. (Abril/1977)


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