À medida que os anos se acumulam, a memória
vai dando sinais de que “nada será como
antes”. Por isso, eu, que “já estou
com o pé nessa estrada”, fico preocupado e com receio de ficar com Alzheimer. Um dos motivos de ficar
obsessivamente postando coisas neste blog é justamente a tentativa de manter a
mente ocupada depois de me aposentar. Mas, pelas asneiras que escrevo, alguém
poderia dizer que eu só uso uma metade, porque a outra está compartilhada com o
capeta, de tanta besteira que sai.
Para variar, estou fugindo do assunto,
circunvagando como sempre. Questão de estilo. O fato é que eu morro de medo de
caducar, como se diz(ia) na minha família. E o motivo é simples. Minha mãe
morreu com Alzheimer, com 88 anos e
minha avó materna, totalmente senil, com 74 anos. Sei lá, pode ser esse meu
futuro (próximo) também. O que não me impede de brincar com a ideia. Pouco
tempo depois de me aposentar, comecei a dizer que estava pensando em me
matricular em um curso de alemão e logo completava (mesmo que ninguém se
interessasse em saber por que) – “Para
falar com o ‘alemão’, oras”.
Imagino que, por sempre fazer piadinhas desse
tipo, muita gente talvez até torça para que meu medo tenha razão de ser. Feitas
as devidas divagações, preciso dizer que não tratarei aqui da doença de minha
mãe, até por ter convivido muito pouco com ela nessa fase. O tema deste post é
a demência de minha avó, pela convivência diária que tivemos durante 22 anos
(isso bem que poderia ser parte daquele livro inacabado).
Ela morreu com 74 anos, completamente
devastada pelo mal de Alzheimer ou
por “arteriosclerose”, como ouvi
naquela época. Para mim, o que menos importa é o diagnóstico correto. O que sei
é que em seis anos, mais ou menos, ela percorreu o caminho inverso de quem
acaba de nascer. Porque tudo começou com ela ainda na fase adulta, caminhou
depois para a adolescência, chegou à infância e morreu bebê. Essa mudança não
aconteceu de forma suave e contínua. Algumas vezes ela entrava em colapso quase
total, deixando enlouquecidas, na tentativa de reanimá-la, minha mãe, minha tia
solteira e outros que estivessem presentes no momento. Após essa reanimação à
base de álcool no nariz, friccionado nos pulsos e sei lá mais o que, era visível
que minha avó se encontrava em um patamar muito inferior ao que tinha estado
anteriormente. Era como se estivesse descendo uma ladeira, de repente
interrompida por uma queda livre, ao fim da qual começava nova ladeira e nova
queda livre, e assim, sucessivamente, até o final.
Nas primeiras manifestações da doença ninguém
entendeu e até achou graça de algumas das “esquisitices” de minha avó. A
primeira – ou uma das primeiras – (que não teve graça nenhuma) aconteceu com
sua irmã de leite, de nome Ambrosina. Essa senhora era negra e muito humilde.
Esporadicamente ia à casa onde morávamos, conversava, tomava um lanche e ia
embora. Pensando bem, lanche não, que é muito moderno. Provavelmente, tomava
café com leite e comia broa de fubá.
Um dia, ao passar pelo portão de entrada,
sempre sem cadeado, foi recebida rispidamente por minha avó. O diálogo foi mais
ou menos assim:
- Que
é que você veio fazer aqui?
- Uai,
Lêta, vim te visitar!
- Some
daqui, sua negra sem vergonha! Nunca mais quero te ver aqui!
Lembro-me de ouvir minha mãe, consternada,
contar da promessa feita – e cumprida – por Ambrosina, de NUNCA MAIS visitar
minha avó.
Depois disso, vieram outros sinais: tentativa
de expulsar a vassouradas uma de suas noras, que, na época, recém-casada,
morava em um dos barracões existentes (felizmente separado da casa por um muro
alto); um pé de sapato guardado na lata de biscoitos; uma saída sem destino
pela rua onde morávamos (foi encontrada a três quarteirões por um conhecido da
família, que a reconduziu meio atarantada para casa). Depois disso, o portão da
rua passou a ter cadeado.
O fato mais surpreendente para mim aconteceu,
ou melhor, acontecia quando ela ainda estava na fase “adolescente”. (Eu já
falei disso em outro post, mas como os leitores deste blog são raríssimos,
creio não haver problema em repetir, até porque o caso é muito curioso). Minha
avó ficava sentada em um dos sofás da sala, para onde eu ia também espancar o
violão, sem me preocupar com nada. Um dia, ao tocar uma música dos Beatles que
tem uma batida cadenciada – “Your
mother should know” – ela se levantou, pegou uma ponta da barra do
vestido e começou a dançar, sorridente, como se estivesse em uma quadrilha de
festa junina. Eu achei aquilo sensacional! O curioso é que nenhuma outra música
provocava nela esse efeito. Bastava, entretanto, eu começar a cantar “Let’s all get up and dance...” e lá
estava ela a dançar de novo. Eu realmente me lembro desses momentos com muito
carinho.
Os irmãos de minha avó ficavam confusos e
constrangidos quando iam visitá-la no início da doença (quando ainda
conversava), pois não dizia coisa com coisa. Um dia, seu irmão Oscar, um
sujeito rico, chato e pedante, perguntou a ela quem eu era. Imediatamente, ela
respondeu:
- É
meu.
- É
seu filho?
E ela, virando-se sorridente para mim:
- É...
Não é?
Eu respondi na lata:
- É
claro que sou, Vó!
E ficamos os três rindo, felizes (eu e ela,
pelo menos).
Outro caso, muito mais comovente, aconteceu
com ela ainda lúcida e com meu avô. Em algum momento da vida, “Sô Chico”, como eu o
chamava de brincadeira, apaixonou-se por outra mulher, de nome Amélia, e o
casamento explodiu. Minha avó foi atrás dessa mulher (acompanhada por minha
mãe, que contou o caso) pronta para tirar satisfações, mas voltou humilhada.
Fizeram uma separação de corpos, ele foi trabalhar no interior e, quando
voltou, passou a morar em um dos cômodos do barracão (edícula) onde dormíamos, eu, meu
irmão e meus pais.
A primeira vez que eu vi meu avô, ou melhor,
a primeira lembrança que tenho dele é esse retorno. Ele, de chapéu, com uma
mala grande de couro amarelo e minha avó, tendo um colapso nervoso fenomenal (o
primeiro de alguns...), depois de bater boca com ele já na porta da rua. Para encurtar
a conversa, de nada adiantou essa cena assustadora e eles deixaram de se falar,
morando na mesma casa. Embora oficialmente rompida com meu avô, minha avó
sempre dava um jeito de “ver a rua” perto do horário em que ele chegava do
trabalho. Com o tempo, creio que passaram a se cumprimentar discretamente.
Pois bem, já com a senilidade um pouco
avançada, ela sorria abertamente para ele – como vi muitas vezes – no momento
de sua chegada em casa. Em outras ocasiões, chorosa, queixava-se de seu pai, “que tinha feito sua mãe sofrer muito”.
Minha mãe comentou comigo que seu avô fora um marido exemplar, que nunca
maltratou a esposa. Em seu delírio senil, entretanto, minha avó utilizava o
próprio pai para externar a dor da traição que sofrera. Isso sempre me fez crer
que até nos seus últimos segundos de lucidez, minha avó manteve-se secretamente
apaixonada por seu (ex) marido. Trágica e bonita história de amor!
26/10/2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário