terça-feira, 3 de outubro de 2023

VOCÊ SABE FALAR ALEMÃO?

À medida que os anos se acumulam, a memória vai dando sinais de que “nada será como antes”. Por isso, eu, que “já estou com o pé nessa estrada”, fico preocupado e com receio de ficar com Alzheimer. Um dos motivos de ficar obsessivamente postando coisas neste blog é justamente a tentativa de manter a mente ocupada depois de me aposentar. Mas, pelas asneiras que escrevo, alguém poderia dizer que eu só uso uma metade, porque a outra está compartilhada com o capeta, de tanta besteira que sai.

Para variar, estou fugindo do assunto, circunvagando como sempre. Questão de estilo. O fato é que eu morro de medo de caducar, como se diz(ia) na minha família. E o motivo é simples. Minha mãe morreu com Alzheimer, com 88 anos e minha avó materna, totalmente senil, com 74 anos. Sei lá, pode ser esse meu futuro (próximo) também. O que não me impede de brincar com a ideia. Pouco tempo depois de me aposentar, comecei a dizer que estava pensando em me matricular em um curso de alemão e logo completava (mesmo que ninguém se interessasse em saber por que) – “Para falar com o ‘alemão’, oras”.  

Imagino que, por sempre fazer piadinhas desse tipo, muita gente talvez até torça para que meu medo tenha razão de ser. Feitas as devidas divagações, preciso dizer que não tratarei aqui da doença de minha mãe, até por ter convivido muito pouco com ela nessa fase. O tema deste post é a demência de minha avó, pela convivência diária que tivemos durante 22 anos (isso bem que poderia ser parte daquele livro inacabado).

Ela morreu com 74 anos, completamente devastada pelo mal de Alzheimer ou por “arteriosclerose”, como ouvi naquela época. Para mim, o que menos importa é o diagnóstico correto. O que sei é que em seis anos, mais ou menos, ela percorreu o caminho inverso de quem acaba de nascer. Porque tudo começou com ela ainda na fase adulta, caminhou depois para a adolescência, chegou à infância e morreu bebê. Essa mudança não aconteceu de forma suave e contínua. Algumas vezes ela entrava em colapso quase total, deixando enlouquecidas, na tentativa de reanimá-la, minha mãe, minha tia solteira e outros que estivessem presentes no momento. Após essa reanimação à base de álcool no nariz, friccionado nos pulsos e sei lá mais o que, era visível que minha avó se encontrava em um patamar muito inferior ao que tinha estado anteriormente. Era como se estivesse descendo uma ladeira, de repente interrompida por uma queda livre, ao fim da qual começava nova ladeira e nova queda livre, e assim, sucessivamente, até o final. 

Nas primeiras manifestações da doença ninguém entendeu e até achou graça de algumas das “esquisitices” de minha avó. A primeira – ou uma das primeiras – (que não teve graça nenhuma) aconteceu com sua irmã de leite, de nome Ambrosina. Essa senhora era negra e muito humilde. Esporadicamente ia à casa onde morávamos, conversava, tomava um lanche e ia embora. Pensando bem, lanche não, que é muito moderno. Provavelmente, tomava café com leite e comia broa de fubá.

Um dia, ao passar pelo portão de entrada, sempre sem cadeado, foi recebida rispidamente por minha avó. O diálogo foi mais ou menos assim:

-   Que é que você veio fazer aqui?
-   Uai, Lêta, vim te visitar!
-   Some daqui, sua negra sem vergonha! Nunca mais quero te ver aqui!

Lembro-me de ouvir minha mãe, consternada, contar da promessa feita – e cumprida – por Ambrosina, de NUNCA MAIS visitar minha avó.

Depois disso, vieram outros sinais: tentativa de expulsar a vassouradas uma de suas noras, que, na época, recém-casada, morava em um dos barracões existentes (felizmente separado da casa por um muro alto); um pé de sapato guardado na lata de biscoitos; uma saída sem destino pela rua onde morávamos (foi encontrada a três quarteirões por um conhecido da família, que a reconduziu meio atarantada para casa). Depois disso, o portão da rua passou a ter cadeado.

O fato mais surpreendente para mim aconteceu, ou melhor, acontecia quando ela ainda estava na fase “adolescente”. (Eu já falei disso em outro post, mas como os leitores deste blog são raríssimos, creio não haver problema em repetir, até porque o caso é muito curioso). Minha avó ficava sentada em um dos sofás da sala, para onde eu ia também espancar o violão, sem me preocupar com nada. Um dia, ao tocar uma música dos Beatles que tem uma batida cadenciada – “Your mother should know” – ela se levantou, pegou uma ponta da barra do vestido e começou a dançar, sorridente, como se estivesse em uma quadrilha de festa junina. Eu achei aquilo sensacional! O curioso é que nenhuma outra música provocava nela esse efeito. Bastava, entretanto, eu começar a cantar “Let’s all get up and dance...” e lá estava ela a dançar de novo. Eu realmente me lembro desses momentos com muito carinho.

Os irmãos de minha avó ficavam confusos e constrangidos quando iam visitá-la no início da doença (quando ainda conversava), pois não dizia coisa com coisa. Um dia, seu irmão Oscar, um sujeito rico, chato e pedante, perguntou a ela quem eu era. Imediatamente, ela respondeu:

-   É meu.
-   É seu filho?

E ela, virando-se sorridente para mim: 
-   É... Não é?

Eu respondi na lata: 
-   É claro que sou, !

E ficamos os três rindo, felizes (eu e ela, pelo menos).

Outro caso, muito mais comovente, aconteceu com ela ainda lúcida e com meu avô. Em algum momento da vida, “Sô Chico”, como eu o chamava de brincadeira, apaixonou-se por outra mulher, de nome Amélia, e o casamento explodiu. Minha avó foi atrás dessa mulher (acompanhada por minha mãe, que contou o caso) pronta para tirar satisfações, mas voltou humilhada. Fizeram uma separação de corpos, ele foi trabalhar no interior e, quando voltou, passou a morar em um dos cômodos do barracão (edícula) onde dormíamos, eu, meu irmão e meus pais.

A primeira vez que eu vi meu avô, ou melhor, a primeira lembrança que tenho dele é esse retorno. Ele, de chapéu, com uma mala grande de couro amarelo e minha avó, tendo um colapso nervoso fenomenal (o primeiro de alguns...), depois de bater boca com ele já na porta da rua. Para encurtar a conversa, de nada adiantou essa cena assustadora e eles deixaram de se falar, morando na mesma casa. Embora oficialmente rompida com meu avô, minha avó sempre dava um jeito de “ver a rua” perto do horário em que ele chegava do trabalho. Com o tempo, creio que passaram a se cumprimentar discretamente.

Pois bem, já com a senilidade um pouco avançada, ela sorria abertamente para ele – como vi muitas vezes – no momento de sua chegada em casa. Em outras ocasiões, chorosa, queixava-se de seu pai, “que tinha feito sua mãe sofrer muito”. Minha mãe comentou comigo que seu avô fora um marido exemplar, que nunca maltratou a esposa. Em seu delírio senil, entretanto, minha avó utilizava o próprio pai para externar a dor da traição que sofrera. Isso sempre me fez crer que até nos seus últimos segundos de lucidez, minha avó manteve-se secretamente apaixonada por seu (ex) marido. Trágica e bonita história de amor!

26/10/2014)


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