sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DOENÇA TERMINAL

Vira e mexe, eu proclamo a quem quiser ouvir que estou velho, que sou um velho. A bem da verdade, não me sinto tão velho como tento fazer as pessoas acreditar, mas sinto-me infinitamente mais velho do que gostaria de ser. Há algum tempo, comentei com um dos meninos que a velhice é a doença mais terminal de todas. Isso era, evidentemente, uma ironia, já que tenho esse estranho hábito de rir de mim mesmo.

Voltando à ideia da doença terminal, apesar de ser uma piada de humor negro, até que a velhice guarda realmente alguma semelhança com as doenças reais, terminais. Olha só: já li ou já ouvi que os doentes terminais passam por etapas distintas, durante a evolução de sua enfermidade, que seriam as fases de negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.

Fazendo uma analogia com o envelhecimento, poderia dizer que a negação seria aquele tipo de comportamento caracterizado pelo início do uso de tinturas para cabelo e pelo utilização de expressões do tipo estou mais novo que muito jovem ou “estou na melhor fase da minha vida!”. O uso de gírias e expressões antigas também ajuda: “ainda dou no couro!” Acredito que é nessa fase que as assistentes sociais e assemelhados fazem a festa, ou melhor, as festas, literalmente. E é aí que se ouve a maldita expressão “melhor idade”, usada por pessoas mais novas ou hipócritas, que não sabem a chatice que é ser velho. Melhor em que, cara-pálida?

Depois dessa, ou, talvez, concomitantemente, inicia-se a fase da raiva. É quando se deplora ter feito isso ou não ter feito aquilo na juventude. Frases exclamativas do tipo “se eu soubesse 'isso assim, assim', eu nunca teria…” Nessa hora o “Hans" (de Hanscião, lógico) fica puto, tem inveja – velada ou escancarada – dos mais jovens. Aliás, expressões do tipo “ficar puto” não são de bom tom quando ditas por idosos. É quando mágoas e rancores guardados afloram, pois aqueles projetos de vida não realizados antes se mostram agora definitivamente inviáveis. Surgem o ressentimento e a revolta pelo que se deixou de fazer quando ainda havia tempo.

A negociação é caracterizada por promessas e acordos feitos consigo mesmo ou com parentes, visando melhorar e prolongar a vida. Tenta mudar hábitos arraigados, quase “milenares”. As expressões típicas são parei de fumar”, “vou me matricular em academia de ginástica”, “começo segunda feira...”, etc. São mecanismos de luta, esperança de cura e prolongamento de vida”, segundo um texto que encontrei na internet.

Hoje, estava pensando que a sensação de envelhecer só é realmente percebida em sua real dimensão por quem já passou dos cinquenta. Antes disso, é mais ou menos como falar de mar sem nunca ter entrado nele. E é aí que surge a depressão, uma fase de percepção da perda definitiva da juventude, quando a angústia e a introspecção se avolumam, a dor psíquica é intensa, sentimentos de culpa e insegurança, tristeza e perda retornam com grande intensidade”.

A fase de aceitação seria aquela em que o sujeito acalma sua mente ou fica mais espiritualizado (como ficam os ateus nessa história?), deixa de se debater contra a certeza mais terrível de que está realmente no fim da vida. Para ficar menos dramático, é o momento, como dizia um antigo colega, de “chamar o cabo corneteiro e mandar executar o toque de foda-se” (essa é outra expressão muito mal vista se dita por um idoso. Os idosos não devem falar palavrão – era o que eu pensava na juventude).

Como já disse aos meninos, eu sinto um prazer meio mórbido de falar mal de mim mesmo, de me diminuir e me depreciar, quase nunca perco a oportunidade de ser ridículo, de fazer piadas sem graça e de mau gosto (mas odeio quando alguém me humilha ou zomba de mim. Aí eu me enfureço, fico puto da vida). Porque se externamente eu ajo assim, isso ocorre graças ao meu “exoesqueleto”, uma capa protetora que construí ao longo da vida. No íntimo, eu sei que não sou assim, não sou “engraçado”, sou melancólico, não sou expansivo e alegre, sou introvertido e meio depressivo. Como diz uma letra de música, “quem olha pra mim e me vê feliz, não sabe o que é duvidar”.

Então, se sou assim, dá pra imaginar a angústia de envelhecer? Porque envelhecer é saber que sonhos e projetos não realizados antes estão definitivamente descartados. É saber que o conhecimento e a “bagagem” profissional acumulada de nada mais servem. E, o pior: é perceber que o rancor e, paradoxalmente, a indiferença de pessoas que amamos aumentam com o tempo, como se fossem o produto da sedimentação de decepções, tristezas, raiva e mágoas passadas e não esquecidas.

Enfim, envelhecer é perceber que a vida não tem nenhum sentido, não tem explicação, não tem lógica. Envelhecer é acumular arrependimentos, rancores, lembranças, saudade, tristeza, melancolia. Tudo isso vai sedimentando devagar até que, quando você vê, a coisa está igual àquelas prateleiras muito altas, difíceis de limpar: quando se dá conta, há uma camada imensa de poeira, quase uma crosta, cobrindo tudo.

Se alguém me perguntasse em que fase estou, diria que em todas, menos na fase da aceitação. E volto à ideia de que essa é uma brincadeira de péssimo gosto e muito, muito politicamente incorreta. Mas, sinceramente, eu abomino as atitudes e pensamentos politicamente corretos.

(ano provável deste texto: 2010)

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