Eu sempre achei que a realidade muitas vezes consegue superar a mais enlouquecida das obras de ficção. Por isso, esse lance de memórias, o registro das lembranças de tempos passados é uma coisa que sempre me atraiu, mesmo quando era jovem. E o tema da reverência de hoje é exatamente isso: um registro de lembranças divertidas e inesperadas.
Há muito tempo (e
quando eu digo “muito tempo” estou falando de vinte, trinta anos atrás), minha
mulher estava lendo todos os livros da “dama do suspense” Agatha Christie. Eu
lia também, mas descobri que depois do décimo livro seguido era necessário dar
uma parada “para respirar”, pois surgia uma espécie de ressaca, uma overdose,
uma sensação de déjà vu. Dava para
perceber que a organização da estrutura de cada livro era mais ou menos
semelhante à dos demais. E isso acabava tirando o interesse pelo novo enredo. Foi
ai que surgiu aqui em casa um livro de memórias, muito leve e bom de ler, cujo
título era “Desenterrando o Passado”.
E a autora era Agatha Christie. Já de início descobria-se que
ela foi casada com o arqueólogo Max Mallowan e que o livro tratava de suas
lembranças de viagens ao Oriente Médio feitas com o marido.
Pois bem, sendo esse um
livro despretensioso, por qual motivo ele (ou sua autora) seria o objeto de minha
reverência? Bom, não custa lembrar que sou um simplório, um ingênuo, que gosta de ler coisas cheias de lirismo (mas não piegas, por favor). Além disso, não estudei Literatura, não cursei Letras e nem sou crítico literário. Então, não preciso posar de intelectual nem porra nenhuma. Sou apenas um sujeito que gosta de ler.
E há textos que ficam em minha cabeça sem que eu faça nada para que isso aconteça – como é o caso dos dois transcritos a seguir, que introduzem e encerram a narrativa. O primeiro é um preâmbulo ou prólogo informal, em forma de poema bem humorado, que dá uma pista do conteúdo do livro (provavelmente, no original soaria melhor). O segundo é justamente o epílogo formal, um encerramento melancólico e emocionado (foi escrito em 1944, em plena Segunda Guerra).
E há textos que ficam em minha cabeça sem que eu faça nada para que isso aconteça – como é o caso dos dois transcritos a seguir, que introduzem e encerram a narrativa. O primeiro é um preâmbulo ou prólogo informal, em forma de poema bem humorado, que dá uma pista do conteúdo do livro (provavelmente, no original soaria melhor). O segundo é justamente o epílogo formal, um encerramento melancólico e emocionado (foi escrito em 1944, em plena Segunda Guerra).
Para finalizar esse
papo furado, sugiro a leitura do livro, se possível, deitado em uma rede, com
uma “aguinha” de coco à mão (ou cervejinha, dependendo do freguês).
ASSENTANDO NUMA COLINA
(Com minhas desculpas a Lewis
Carroll)
Tudo o que puder, vou lhes
contar
Desde que me ouçam com
atenção:
Encontrei um jovem erudito a
estudar,
Assentado numa colina.
“Quem sois, senhor?”,
perguntei
“E o que procurais?”
Sua resposta fixou-se em meu
pensamento,
Como manchas de sangue nas
páginas de um livro.
Disse: “Procuro velhos jarros
De dias pré-históricos.
Classifico-os em grupos,
E grupos de tipos diferentes.
Depois (como você), começo a
escrever.
Minhas palavras têm o dobro
Do tamanho das suas, são mais
sérias,
E mostram que os meus colegas
estão enganados!”
Mas eu estava pensando num
plano
Para dar cabo de um milionário
Despachar seu corpo de
aeroplano,
Ou escondê-lo em algum
aviário.
Assim, sem resposta a dar,
E me sentindo meio encabulada,
Gritei: “Vamos, diga-me como você vive!
E onde, e quando, e por quê?”
Sua resposta, gentil, veio cheia de humor:
“Quando penso no assunto, para valer,
Chego à conclusão de que é
Há cinco mil anos atrás que eu queria viver.
E quando você pegar o gosto,
E aprender a desprezar estes anos D.C.,
Então poderá vir comigo escavar,
Sem nem pensar em voltar”.
Mas eu estava pensando num jeito
De botar arsênico no chá.
E não consegui, tão de repente,
Voltar tantos anos atrás.
Olhei para ele, dei um suspiro,
Seu rosto era bem agradável...
“Vamos, diga-me como você vive”, pedi,
“E o que é que você faz...”
Ele disse: “procuro objetos
Feitos pelos homens, em suas andanças.
Eu fotografo, e classifico,
E empacoto e mando-os para casa.
Estas coisas a gente não vende por ouro
(Nem por dinheiro algum, na verdade!)
Mas põe nas prateleiras dos museus,
Para serem vistas por toda a cidade”.
“Às vezes desenterro amuletos,
E figurinhas arrebentadas,
Pois naqueles tempos pré-históricos
Não havia pessoas muito civilizadas!
E assim a gente vai se divertindo;
Não é bem o caminho da fortuna.
Mas os arqueólogos vivem rindo,
E têm uma saúde de ferro!”
Prestei atenção, pois naquele momento,
Eu tinha acabado um projeto
De manter um corpo bem conservado
Fervendo-o em algum preparado.
Agradeci-lhe por ter me contado
Tudo com tamanha dedicação,
E disse que iria com ele,
Na sua próxima Expedição...
E agora, se por acaso eu mergulho,
Sem querer, os dedos num ácido,
Ou se quebro alguma louça, com muito barulho,
Por não ser lá muito calma;
Ou se vejo um rio transbordando,
E ouço um grito de cortar a alma,
Suspiro, pois isso me faz lembrar
Daquele jovem que conheci tão bem...
Cujo olhar era sereno, a fala calma,
Cujos pensamentos estavam tão longe,
Cujos bolsos tiniam de cacos antigos,
Que ensinava baixinho, com tanto saber,
Que usava longas palavras que nunca ouvi,
Cujos olhos passeavam, com fervor, pelo chão,
Procurando tantas coisas, com a maior atenção,
Que quis me mostrar de qualquer jeito,
Que não conhecer certas coisas, era um defeito,
E que eu devia ir-me embora com ele,
E desenterrar o passado em longínquas colinas!
EPÍLOGO
Esta
crônica inconsequente foi iniciada antes da guerra, e começou pelos motivos que
mencionei.
Depois,
foi deixada de lado. Mas agora, depois de quatro anos de guerra, tenho pensado
cada vez mais naqueles dias passados na Síria, e finalmente me senti impelida a
pegar as minhas notas e toscos diários e completar o que começara e deixara de
lado. Pois me parece que é bom lembrar que existiram dias e lugares assim, e
que neste exato momento a minha colina de margaridas está em flor, e que velhos
de barbas brancas, trotando em seus burricos, talvez nem saibam que está havendo
uma guerra. “Não nos atinge, por aqui...”
Pois
depois de quatro anos passados em Londres durante a guerra, eu sei que boa era
aquela vida, e foi uma grande alegria e alívio reviver aqueles dias novamente...
Escrever estas anotações simples não foi uma tarefa, mas um ato de amor. Não
foi fugir para algo que já aconteceu, mas sim trazer para a dura labuta e amargura
de hoje alguma coisa que a gente tinha, e ainda tem.
Pois
eu amo aquele país fértil e gentil, e sua gente simples que sabe rir e amar a
vida; que é alegre e despreocupada, e que tem dignidade, boas maneiras, e um
grande senso de humor. E para quem a morte não é terrível.
Inshallah, eu voltarei
lá algum dia, e as coisas que eu amo não terão desaparecido desta terra...
Primavera,
1944
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