Hoje em
dia, quando vejo que a intolerância e o rancor, independente de que lado do
espectro político ou espiritual em que as pessoas estejam, continuam tão
presentes no Brasil e em outros países, eu me lembro de uma pessoa a quem tive
a sorte, a honra e o prazer de conhecer, um humanista, um sujeito que celebrava
a amizade e a tolerância como dois dos grandes valores que sempre nortearam sua
vida.
É à memória desse cara, o melhor amigo que já tive, que dedico os próximos
posts que, reunidos, formam o texto original que escrevi sobre ele logo após
sua morte. E foi muito bom remexer nessas lembranças, relembrar suas histórias.
Todos os nomes e apelidos citados são fictícios e foram trocados para preservar
a privacidade de quem participou dos casos contados. Ao todo, serão quinze os
posts que tentam preservar as histórias contadas e vividas por uma pessoa
absolutamente singular. Assim, esta semana e também a próxima serão dedicadas
ao Digão, meu amigo queridíssimo. A um eventual leitor desse blog, eu sugiro
que leia todos os quinze posts, pois trazem casos divertidos e histórias
saborosas. Por isso, som na caixa:
Por absoluta falta do que fazer e por já ter
contado esses casos para muitas pessoas, resolvi escrevê-los, como forma de
passar o tempo enquanto o serviço não surgia. Descobri com isso que o trabalho
de escrever é muito cansativo e enfadonho, pois é cheio de faz e refaz,
correções ortográficas e coisas que me fazem pensar em monges da idade média,
reclusos em suas celas, com todo o tempo do mundo para refletir sobre suas
vidas, enquanto copiavam e ilustravam pacientemente textos antigos de outros
povos e outras épocas. Ou seja, um senhor programa de índio.
Depois que comecei a escrever, percebi que
este texto, para mim, é uma forma de homenagear a memória de um amigo querido,
ao registrar suas histórias e casos mirabolantes.
Falando francamente, alguns são tão insólitos
que nunca saberei se realmente aconteceram tal como nos foram contados ou, até
mesmo, se não são invencionices de um grande contador de casos. Os diálogos,
mesmo que recriados, são o mais próximo possível do que consegui lembrar e
tentam manter a mesma descontração com que foram proferidos.
O INÍCIO
Foi no início da década de oitenta, talvez em
1980 ou 1981, que ouvi falar do Rodrigão, um sujeito que viria tornar-se meu
melhor amigo fora do ambiente familiar, apesar da grande diferença de idade
existente – uns trinta anos, talvez.
Trabalhávamos na mesma sala eu e o Anísio,
colega recém-transferido para a sede da empresa, vindo de uma obra em Belo
Horizonte. Com o passar do tempo, meu colega começou a falar sobre o Rodrigo, a
contar alguns casos, sempre rindo muito. Disse que esse sujeito era tratado por
alguns engenheiros pelo apelido "Digão" para diferenciá-lo do filho
Diguinho, que também trabalhava na empresa e tinha o mesmo nome do pai.
Esse “Digão” era cunhado do presidente da
empresa, pois sua primeira esposa, mãe do “Diguinho” e já falecida, era irmã do
dono. Assim, antes de conhecê-lo, já sabia que era apaixonado por livros, que
tinha cinco mil livros em casa, que era muito engraçado, etc.
Um belo dia entra em nossa sala um senhor de
cabelos grisalhos já quase integralmente brancos, de óculos, vestindo o que me
pareceu ser paletó de terno, mas sem gravata (o que acho feio demais). Além de
notar a calva que avançava em direção à nuca, pareceu-me ser estrábico. Tinha
também o nariz ligeiramente adunco, a pele seca, enrugada e meio avermelhada. E
era velho, bem mais velho que eu e meu colega, pois aparentava ter uns setenta
anos ou mais.
Ao ser apresentado a ele pelo Anísio – “Olha aí, esse é o cara de quem falei”,
reagi com a maior efusão:
- Ah,
você é que é o famoso Digão?
A reação foi a mais chocha e tímida possível,
deixando-me constrangido e meio descrente das histórias hilariantes que já
tinha ouvido sobre ele. Naquele dia, entretanto, começava uma amizade muito
grande, um relacionamento quase diário, espontâneo, cordial e divertidíssimo,
que durou até o ano de 1994, quando saí da empresa.
Depois disso, embora sempre caloroso, o
contato ficou muito esporádico, feito através de ligações telefônicas que
geralmente partiam dele (– “venha me visitar antes que eu morra, pô!”).
Em 2007 eu e minha mulher fizemos três
visitas a ele, quando já o encontramos bem alquebrado. Morreu em 2008, mas vira
e mexe eu me lembro dele, de sua companhia agradabilíssima e de seus casos
mirabolantes. Como esse:
O OLHO DE VIDRO
Um dia, pela manhã, pouco tempo depois de já
estar trabalhando conosco na mesma sala, ele não apareceu. Perguntei ao
Diguinho, que ainda era estagiário, onde estava seu pai.
– Ele
foi trocar o olho.
Não entendi nada, e perguntei: – Foi trocar o óleo?
– Não,
pô, foi trocar o olho, olho de vidro, que gastou e está causando irritação na
pálpebra. Você não sabia que ele tem olho de vidro?
Depois do almoço, o Digão – com um
sorriso meio irônico e uma expressão que eu definiria como cara de vaca – ficou
nos olhando de sua mesa. Eu, meio constrangido, sorri sem jeito enquanto
notava que o cristalino da nova prótese parecia ligeiramente maior que o da
anterior. Ele não se conteve e disse:
– Vocês
são péssimos observadores!
Meu colega, mais debochado, retruca: – "Que é que foi, 'Véio'?”
– Eu
estou de olho novo e vocês nem falam nada!
A partir daí, começamos a conversar sobre a
prótese e sobre o motivo da perda do olho, como se estivéssemos comentando
sobre outra pessoa ou conversando sobre futebol, tão à vontade ele nos deixou.
Fiquei sabendo que perdeu a visão aos quinze
anos, ao levar um tiro de chumbinho de um amigo, que brincava com uma
espingarda de ar comprimido (–“Vou te dar
um tiro!” – "Então dá, pô!”). Esse tiro, segundo ele, acabou com o
maior sonho de sua vida, que era ser piloto de avião.
Depois do tiro, em lugar de ser extraído todo
o olho, foi colocada apenas uma capa no que restou do globo ocular. Assim, os
movimentos do olho cego foram preservados, causando no máximo a impressão de
que sofria de estrabismo.
Quando ficou viúvo, os quatro filhos (três
meninas e um menino) eram pequenos e ficavam durante o dia aos cuidados da avó
materna. À noite, ao voltar do serviço, ele os levava para casa. Os meninos, como
qualquer criança sadia, eram provavelmente, irrequietos, levados. Como ficavam
o dia todo longe do pai e sem a mãe para tomar conta, eles ficavam em um “freje” danado, segundo suas palavras.
Para manter os meninos quietos enquanto tomava banho, tirava a prótese e a
colocava sobra a mesa, com uma ameaça do tipo:
- É
bom não fazer bagunça, pois eu estou vendo.
E os meninos ficavam acuados, encolhidos
talvez, olhando aquela coisa, aquele olhar congelado.
Segundo o Digão, essa história maluca foi
lembrada por uma das filhas vigiadas.