O CONTO DA MEMÓRIA
O Digão era muito culto e um ótimo contador
de casos, sempre dizia coisas interessantes e era particularmente bom no que se
conhece como “cultura inútil”. Nas conversas diárias sempre saía algum assunto
curioso, precedido pelo vocativo – “Aqui,
você viu...?”. Quando o assunto foi “memória”, gabou-se de ter uma
excelente para números, sendo capaz de lembrar com facilidade quinze ou mais
algarismos. O Anísio ironizou – “Qualé,
Véio, você não lembra nem quando nasceu!..”
Seguiu-se uma animada discussão sobre a forma
utilizada por ele para guardar números – “É tudo
uma questão de ritmo”, disse, batendo ritmadamente a mão na mesa.
Questionado sobre isso, comentou que no início da humanidade, ainda na ausência
de escrita, os ensinamentos religiosos eram divulgados oralmente, de forma
cantada e cadenciada, mais fácil de memorizar. A explicação me pareceu
fascinante, totalmente lógica e, claro, fruto de uma grande cultura. Aí ele
propôs um teste para demonstrar sua “incrível” memória
.
– Escreve
aí qualquer número, que eu vou ler e memorizar, disse para o Anísio.
Condescendente, o Anísio sugeriu que ele
mesmo escrevesse os algarismos. Para empatar, ele foi ditando os algarismos e o
Anísio anotando. De vez em quando perguntava quantos já tinham sido escritos.
Quando chegou a vinte, parou. Olimpicamente, pegou o papel, leu-o por alguns
minutos e o devolveu para meu colega. Em seguida, batendo cadenciadamente a mão
na mesa, começou:
– 2
71 82 81 14 15 92 65 35 26 14
Meu colega, com um sorriso irônico, comentou
que o número estava correto.
– Eu
posso guardar esse número por, pelo menos, um mês, diz o Digão,
exultante.
Encantado com esse prodígio de memória peguei
o papel e pedi que repetisse. E ele, satisfeito, repetiu tudo sem errar: – “2 71 82”...
No dia seguinte, o Anísio refez o teste e ele
acertou na mosca. Aí eu comecei a fazer propaganda de sua memória com os outros
engenheiros. Uma semana depois, eu já contava esse feito extraordinário para os
gerentes. Um mês depois, eu contei para o diretor.
Ao ficar sabendo disso, o Digão e o Anísio
começaram a rir descontroladamente. Sem entender nada, perguntei o que estava
acontecendo:
– Isso
é uma brincadeira! Eu não tenho memória nenhuma. Esses números são o
número e (base dos logaritmos neperianos), seguido pelo número PI com
10 algarismos e mais o telefone lá de casa, sem o prefixo.
– Filhos
da puta!!!!! Eu fiz a maior propaganda de sua memória, seu bosta! Agora, eu não
acredito em merda nenhuma que você contar.
E tome xingamentos do otário aqui e tome
risadas da parte dos cúmplices no conto da memória
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