quarta-feira, 16 de julho de 2014

POEMA EM LINHA RETA - ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)

Antes da reverência de hoje, preciso dizer que não conheço nada ou quase nada da obra dos que são homenageados nesta seção. Só conheço “moléculas”, “farelos” do que esse pessoal escreveu. Apenas fiquei fascinado pelos fragmentos que li. Ou seja, minha cultura é apenas de orelhas de livros.

Então, quando transcrevo um texto de determinado autor, estou só dando a chave, só abrindo a porta de uma casa que desconheço. Quem gostar do ambiente apenas entrevisto, pode, quem sabe, querer entrar e conhecer mais um pouco da obra.

Como é o caso do homenageado desta semana. A reverência de hoje é para Fernando Pessoa, “o mais universal poeta português”. A curiosidade é ter ele criado mais de 70 personagens para escrever seus textos. O texto escolhido é um poema incrível (que me faz lembrar de algumas pessoas que conheço pessoalmente) escrito por Álvaro de Campos, um de seus heterônimos mais famosos.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

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