sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

AMIGO URSO

 
Como prova de que eu sou um urso hibernando (a barriga lembra um pouco), preciso dizer que de todos os colegas de ensino de primeiro e segundo grau só tenho contato esporádico com um. Dos cinco anos de faculdade sobrou apenas um colega a quem cumprimento amistosamente quando o vejo. E dos trinta e quatro anos de vida profissional só consegui tirar dois ex-colegas. Com um deles só mantenho algum contato via Facebook.
 
Por isso, ao me encontrar com alguns desses jamais pergunto como estão os antigos colegas, quem morreu, quem ficou rico, etc. Hoje, comprando algumas coisas em um supermercado, tive o ombro tocado pelo ex-colega de ginásio. E o normal seria começarmos aquela lenga-lenga tradicional – “E aí, como vai? Tudo bem? Família boa?”, mas meu colega estendeu a conversa quando me perguntou se eu me lembrava do Nazir dos tempos de ginásio.
- Nazir ou Samir? Eu o chamava de Samir.
- Esse mesmo. Nazir.
- Que tem ele?
- Fiquei sabendo que suicidou.
- Puta que pariu! Agora?
- Não, há uns dois anos. Ele morava com a mãe e entrou em depressão quando ela faleceu. Passou um pouco de tempo e ele “caiu” do segundo andar do prédio onde morava.
- Que loucura! Mas ele era muito estranho. Ou melhor, muito retraído, muito tímido, ficava vermelho só de alguém chamar seu nome. Eu me dava bem com ele, pois como diz meu filho, “boi preto reconhece  boi preto”. Sacanagem!
- Pois é. Deixe eu ir agora, pois minha mulher está me esperando para almoçar.
- Falou.
- Abração.
 
Chocado com a notícia lembrei-me de uma conversa que tive com o Samir/Nazir ainda na juventude, quando nos encontramos em uma festa junina, um monólogo para lá de constrangedor feito por ele, já totalmente bêbado.
 
Acreditando que alguém poderia me condenar por desejar postar no blog esta história esquecida, pensei em recrutar o ChatGPT para fazer o trabalho braçal a partir do que me lembrava de ter ouvido e produzir uma crônica de “ficção”, sem referência nenhuma à morte do ex-colega, mas descobri que a AI moralista e puritana não escreveria o texto que eu esperava que fizesse. Em vez disso, apareceram mensagens em inglês com estes dizeres:
 
This content may violate our content policy. If you believe this to be in error, please submit your feedback – your input will aid our research in this area.
 
Que em língua de gente significa:
Este conteúdo pode violar nossa política de conteúdo. Se você acredita que isso é um erro, envie seu feedback – sua opinião ajudará nossa pesquisa nesta área.
 
E não houve meio de convencer o chato do GPT a me ajudar. Por isso, mesmo parecendo ser um calhorda irrecuperável (talvez eu seja) até pensei em reproduzir o que o coitado do Samir/Nazir me contou um dia, caindo de bêbado.
 
Imagino que depois, já sobrio, deve ter até se flagelado, ao se arrepender de ter sido tão patético. E nunca mais nos falamos (ainda bem), pois já estávamos em faculdades e cursos diferentes (creio que estudava pedagogia ou coisa semelhante). Mas resolvi não escrever as confidências que me fez, decidi não vender minha alma ao diabo. Mesmo que não acredite no diabo. 

Sinceramente falando, ainda que pareça oportunismo da minha parte (é mesmo, eu sei), este post estaria na linha do meu raciocínio sobre o esquecimento definitivo das pessoas comuns quando ninguém mais se lembra de algum caso ou sabe seu nome, etc. Assim, fica aqui registrado que um jovem muito tímido um dia bebeu tanto que resolveu me contar suas constrangedoras e patéticas primeiras experiências sexuais.  O problema é que nem tenho certeza de seu nome real, se era mesmo Nazir ou Samir.

Mas nada mais direi sobre isso em respeito à memória de uma pessoa que não conseguiu suportar o peso da Vida. E deixem para me apedrejar em outra ocasião.


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