sábado, 1 de julho de 2023

HERBERT E PAWEL - HERBERT

 Tive a honra de conhecer, conviver e ter como colegas na empresa onde mais gostei de trabalhar dois engenheiros que tiveram suas vidas de alguma forma transformadas pela Segunda Guerra Mundial. Herbert e Pawel. Na verdade, o nome “real” do Herbert era Herberto, já o do Pawel era Pawel mesmo - ou “Dr. Pawel”, como todos respeitosamente o tratavam. 

 
HERBERTO (OU HERBERT)
Quem usava esse nome horroroso era um sujeito muito alto, muito magro, ali na casa dos 50 anos ou pouco mais. Era o chefe competentíssimo da seção de projetos da empresa onde trabalhei. Com ele trabalhavam cinco desenhistas e projetistas. Curiosamente, antes de começar a trabalhar na área de engenharia foi motorista de caminhão, atividade que lhe rendeu a admiração dos motoristas da empresa, pela habilidade de manobrar e estacionar sua Chevrolet C14 sem olhar para trás, só no espelho retrovisor.
 
Sua grande experiência com projetos e cálculo estrutural foi adquirida primeiro como desenhista, depois como projetista e finalmente como calculista de um escritório de engenharia. Mas tudo isso sem ser engenheiro, pois se graduou já velho em engenharia. E o motivo, segundo ele, foi para dar exemplo a um filho que não queria nada com os estudos. Para provar que não havia idade para fazer um curso de terceiro grau, prestou vestibular, foi aprovado e formou-se em engenharia mecânica.
 
Esse conhecimento deve ter sido útil para projetar e calcular todo tipo de traquitana necessária durante a execução das obras contratadas pela empresa. Também deve ter servido quando comprou um caminhão velho e começou a transformá-lo em motorhome. E o primeiro passo foi cortar e alongar o chassi do caminhão para ficar de acordo com o projeto que desenvolveu para materializar o sonho de sair acampando com a família por aí.
 
A origem do nome idiota que usava estava no período da Segunda Guerra. Era brasileiro, filho de alemães naturalizados. O pai, Hubert, veio para o Brasil ainda criança, o mesmo acontecendo com sua mãe.
 
Hubert e esposa devem ter-se conhecido e casado na colônia alemã da cidade. Tiveram dois filhos: Herbert e Frida. Apesar de brasileiros natos ou naturalizados e fluentes em português com zero sotaque, nada mais natural que pais e filhos conversassem em alemão dentro de casa e talvez até com alguns amigos.
 
Mas a guerra começou, o Brasil entrou na briga e de repente ficou perigoso ser alemão. Por isso, uma das primeiras providências foi aportuguesar os nomes próprios. Hubert ganhou um “O” transformando-se em Huberto. O mesmo aconteceu com meu colega, que passou a chamar-se Herberto, um nome desgraçado de feio, só melhor que o nome do pai.
 
A outra providência foi passar a só falar em português, até mesmo dentro de casa (sabem como é, as paredes podem ter ouvidos). Assim, quando a guerra acabou tinham perdido o costume e o prazer de falar no idioma dos antepassados.
 
Curiosamente, quando a empresa onde trabalhávamos trouxe para o Brasil dois alemães para auxiliar na elaboração da proposta para construção da usina nuclear Angra III, meu colega Herberto pôde expressar-se no idioma há muito abandonado ao conversar com os gringos. E esta é a parte pitoresca desta história: os alemães lhe disseram que ele falava sem nenhum sotaque, mas com expressões e vocabulário muito antigos, algo assim como alguém usando palavras em desuso tipo “Vosmecê” ou “Vossa mercê”. 
 
Para terminar, um caso divertido. Tentarei ser claro e sucinto na última lembrança do Herberto: provavelmente no início da década de 1970 a empresa onde trabalhei ganhou a licitação para construir as obras civis de uma hidrelétrica, serviço de responsa e bastante técnico. O Herberto foi designado chefe da seção técnica da obra, setor encarregado de descascar os pepinos surgidos durante a construção.
 
O maior desafio foi projetar e construir a forma (molde) do “tubo de sucção”, um conduto dentro da barragem que leva a água represada até a turbina para fazê-la girar.
 
Para encurtar a conversa, o Herberto projetou e calculou os esforços que a forma de madeira sofreria ao ser lançado o concreto sobre ela. Era um monstrengo que precisou ser dividido em quatro partes cada uma delas do tamanho da carroceria de um caminhão. Tive a oportunidade de ver as fotos  (lindas!)  dessas peças.
 
Antes, entretanto, para não vacilar e provocar algum erro grave durante a execução da obra, O Herberto mandou os carpinteiros construir um modelo em escala reduzida, estudou a melhor forma de fixar as partes entre si, etc.
 
Precisei me deter um pouco nessas particularidades, só para falar que o “buraco” que seria deixado dentro do corpo da barragem era o “ó do borogodó”, pois tinha a forma de um cachimbo e a seção originalmente retangular ia se modificando até tornar-se circular. E a forma de madeira tinha de “entregar” esse formato. As fotos mostram uma obra de arte em toda a sua rudeza, feita com centenas de tiras de madeira semelhantes a ripas de telhado lixadas e cobertas por massa plástica (se não me engano), pregadas em vários “anéis” robustos de madeira cada um com um formato diferente do outro, justamente para criar a forma prevista no projeto da barragem.
 
Resumindo, um trabalho filha da puta de complexo que exigiu memória de cálculo e desenhos auxiliares, tudo preparado e detalhado pelo fodíssimo Herberto (que ainda nem era engenheiro!). E foi aí que aconteceu o episódio que me fez rir muito.
 
Os fiscais da empresa contratante chegaram à obra para ver o “cachimbo”. Parece que o engenheiro chefe da construtora era meio calhorda e disposto a gozar com o pinto dos outros, pois começou a conversar com os fiscais como se fosse ele o responsável pelos estudos técnicos e projetos construtivos. Isso na frente do Herberto, que permaneceu calado.
 
Quando seu chefe pediu para que ele trouxesse os esboços e a memória de cálculo para mostrar para os fiscais, o Herberto nem pestanejou. Foi até sua sala, queimou todos os estudos e desenhos que tinha feito e voltou dizendo que infelizmente tinha jogado fora o estudo, justamente "por não ser mais necessário". Tomou, vacilão?

Um comentário:

  1. No marcador "Memória" você deve encontrar. Eu fiz um arquivo com as memórias e casos de família, mas só mandei para meus filhos.

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