Eu gosto de contar casos, pois talvez a única
coisa que me reste na mente são lembranças de pessoas que conheci,
acontecimentos que presenciei, momentos em que vivi, sensações que experimentei. E só consigo me lembrar de episódios antigos, pois meu cérebro se recusa a
guardar coisas novas. Bom preço a pagar por ser idoso? Me engana que eu gosto!
O caso de hoje é sobre um sujeito que conheci
e que acaba de falecer, creio que perto dos noventa anos. Chamava-se José. Só
José, condenado como eu a ter apenas o sobrenome como complemento. A sorte dele
era ser conhecido por “Zé Japonês”, pois sendo filho de pai e mãe japoneses,
seu nome era José Uemoto Maia. Uemoto, tudo bem, mas... Maia? E é aqui que
começa esta história.
Bem no início do século XX um casal de
japoneses desembarcou no Brasil. Não sei quanto tempo permaneceram em São Paulo
ou no Rio de Janeiro, só sei que decidiram morar em Minas Gerais, mais
precisamente no interior de Minas Gerais.
Vida difícil, a barreira do idioma a vencer,
foram levando a vida até a esposa adoecer. Nessa época já conheciam Dona
Rosinha, provavelmente vizinha do casal. Dona Rosinha tratou e cuidou da doente
até ela curar-se. O casal nada tinha a oferecer como pagamento ou prova de
gratidão. Nem eles nem Dona Rosinha tinham filhos Por isso, ofereceram o
impensável (para mim, pelo menos): o primeiro filho do sexo masculino que
nascesse seria dado definitivamente para a benfeitora, para que o registrasse e
criasse como filho legítimo.
O primeiro e único filho do sexo masculino a
nascer foi José, o Zé Japonês. O tempo passou, o casal de japoneses decidiu se
mudar para São Paulo e Dona Rosinha veio para Belo Horizonte com o filho José.
As amigas mantinham contato por carta mas nunca mais se encontraram.
Um dia, quando o Zé já estava no final da
adolescência, sua mãe brasileira disse que ele precisava conhecer seus pais
biológicos. A primeira reação foi a recusa total. Para que conhecer pessoas com
quem não tinha nenhum vínculo afetivo nem contato?
Dona Rosinha não era pessoa para ser
contrariada. E os dois acabaram viajando para São Paulo. O encontro com a
desconhecida família teve o formalismo e a seriedade nipônicos que a ocasião
pedia. O pai curvando-se respeitosamente para cumprimentá-los, a mãe e as irmãs
com sorrisos e (talvez!) abraços. Enquanto esteve com a família recém-adquirida,
ficava sentado ao lado da mãe, ambos calados, trocando sorrisos tímidos e risinhos
encabulados.
Creio que o primeiro e talvez único emprego
que teve foi em empresa que trabalhava com projetores de filmes e artigos
correlatos. Aprendeu a consertar e operar os equipamentos e, talvez pela
seriedade e comportamento reservado e discreto, acabou trabalhando também como projecionista
de filmes em sessões no Palácio da
Liberdade, quando Juscelino Kubistchek era governador de Minas.
O passo seguinte foi montar a “Cinetécnica
Uemoto”, onde continuou a consertar projetores depois do fechamento da empresa
onde trabalhava. Com o fechamento progressivo dos cinemas de rua e o advento do videotape o conserto e manutenção de projetores foram também diminuindo, obrigando-o a começar a
consertar eletrodomésticos. E foi assim que eu me aproximei dele.
A última vez em que estive em sua oficina foi
para que ele me prestasse um grande favor. Temos um pequeno rolo de filme 16 mm
com cenas de nosso casamento. Mas não conhecemos ninguém que tivesse o
equipamento para fazer a projeção desse filme. Foi aí que tive a ideia de
procurá-lo para saber se tinha um projetor que permitisse essa projeção. Para
minha sorte, tinha acabado de restaurar um equipamento desses e o cliente ainda
não tinha ido buscá-lo. Concordou imediatamente.
Pedi à namorada de meu filho para trazer sua
filmadora e filmar as antigas imagens em preto e branco que estavam sendo
projetadas em uma parede branca em sua oficina. E foi assim que conseguimos
resgatar cenas filmadas em 1975, gravadas por cinegrafista profissional em um
resto de filme utilizado em campanha publicitária (um cunhado de minha mulher
era sócio de uma agência publicitária).
A história de vida do Zé Japonês atraiu a
atenção de uma jovem que estudava Cinema e era vizinha e amiga de seus filhos.
Disso resultou um curta metragem que recebeu o título “Duralex Sedlex” (ainda bem que é falado em português, pois as legendas parecem ter sido feitas por um semi-analfabeto).
Se
você, caro leitor (como é mesmo o seu nome?), tiver interesse em assisti-lo, o link é este:
https://www.youtube.com/watch?v=SZLYl7ywhoY
O atencioso, calado e reservado Zé Japonês
morreu com Alzheimer, mesma doença que se manifestou em sua esposa, que agora
mora com os filhos.
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