sexta-feira, 30 de junho de 2023

DURA LEX SED LEX

 
Eu gosto de contar casos, pois talvez a única coisa que me reste na mente são lembranças de pessoas que conheci, acontecimentos que presenciei, momentos em que vivi, sensações que experimentei. E só consigo me lembrar de episódios antigos, pois meu cérebro se recusa a guardar coisas novas. Bom preço a pagar por ser idoso? Me engana que eu gosto!
 
O caso de hoje é sobre um sujeito que conheci e que acaba de falecer, creio que perto dos noventa anos. Chamava-se José. Só José, condenado como eu a ter apenas o sobrenome como complemento. A sorte dele era ser conhecido por “Zé Japonês”, pois sendo filho de pai e mãe japoneses, seu nome era José Uemoto Maia. Uemoto, tudo bem, mas... Maia? E é aqui que começa esta história.
 
Bem no início do século XX um casal de japoneses desembarcou no Brasil. Não sei quanto tempo permaneceram em São Paulo ou no Rio de Janeiro, só sei que decidiram morar em Minas Gerais, mais precisamente no interior de Minas Gerais.
 
Vida difícil, a barreira do idioma a vencer, foram levando a vida até a esposa adoecer. Nessa época já conheciam Dona Rosinha, provavelmente vizinha do casal. Dona Rosinha tratou e cuidou da doente até ela curar-se. O casal nada tinha a oferecer como pagamento ou prova de gratidão. Nem eles nem Dona Rosinha tinham filhos Por isso, ofereceram o impensável (para mim, pelo menos): o primeiro filho do sexo masculino que nascesse seria dado definitivamente para a benfeitora, para que o registrasse e criasse como filho legítimo.
 
O primeiro e único filho do sexo masculino a nascer foi José, o Zé Japonês. O tempo passou, o casal de japoneses decidiu se mudar para São Paulo e Dona Rosinha veio para Belo Horizonte com o filho José. As amigas mantinham contato por carta mas nunca mais se encontraram.
 
Um dia, quando o Zé já estava no final da adolescência, sua mãe brasileira disse que ele precisava conhecer seus pais biológicos. A primeira reação foi a recusa total. Para que conhecer pessoas com quem não tinha nenhum vínculo afetivo nem contato?
 
Dona Rosinha não era pessoa para ser contrariada. E os dois acabaram viajando para São Paulo. O encontro com a desconhecida família teve o formalismo e a seriedade nipônicos que a ocasião pedia. O pai curvando-se respeitosamente para cumprimentá-los, a mãe e as irmãs com sorrisos e (talvez!) abraços. Enquanto esteve com a família recém-adquirida, ficava sentado ao lado da mãe, ambos calados, trocando sorrisos tímidos e risinhos encabulados.
 
Creio que o primeiro e talvez único emprego que teve foi em empresa que trabalhava com projetores de filmes e artigos correlatos. Aprendeu a consertar e operar os equipamentos e, talvez pela seriedade e comportamento reservado e discreto, acabou trabalhando também como projecionista de filmes em sessões no Palácio da Liberdade, quando Juscelino Kubistchek era governador de Minas.
 
O passo seguinte foi montar a “Cinetécnica Uemoto”, onde continuou a consertar projetores depois do fechamento da empresa onde trabalhava. Com o fechamento progressivo dos cinemas de rua e o advento do videotape o conserto e manutenção de projetores foram também diminuindo, obrigando-o a começar a consertar eletrodomésticos. E foi assim que eu me aproximei dele.
 
A última vez em que estive em sua oficina foi para que ele me prestasse um grande favor. Temos um pequeno rolo de filme 16 mm com cenas de nosso casamento. Mas não conhecemos ninguém que tivesse o equipamento para fazer a projeção desse filme. Foi aí que tive a ideia de procurá-lo para saber se tinha um projetor que permitisse essa projeção. Para minha sorte, tinha acabado de restaurar um equipamento desses e o cliente ainda não tinha ido buscá-lo. Concordou imediatamente.
 
Pedi à namorada de meu filho para trazer sua filmadora e filmar as antigas imagens em preto e branco que estavam sendo projetadas em uma parede branca em sua oficina. E foi assim que conseguimos resgatar cenas filmadas em 1975, gravadas por cinegrafista profissional em um resto de filme utilizado em campanha publicitária (um cunhado de minha mulher era sócio de uma agência publicitária).
 
A história de vida do Zé Japonês atraiu a atenção de uma jovem que estudava Cinema e era vizinha e amiga de seus filhos. Disso resultou um curta metragem que recebeu o título “Duralex Sedlex” (ainda bem que é falado em português, pois as legendas parecem ter sido feitas por um semi-analfabeto).

Se você, caro leitor (como é mesmo o seu nome?), tiver interesse em assisti-lo, o link é este: 
https://www.youtube.com/watch?v=SZLYl7ywhoY

O atencioso, calado e reservado Zé Japonês morreu com Alzheimer, mesma doença que se manifestou em sua esposa, que agora mora com os filhos.
 

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