quarta-feira, 5 de julho de 2023

OROZIMBO

 
 Em março de 2017, pensando nas pessoas com quem convivi até 1994 na empresa onde mais gostei de trabalhar, resolvi usar o Facebook para encontrar essa tchurma. Na verdade, eu não queria manter nenhum contato, pois sou um ogro. Queria apenas ver como estão hoje.  Sado-masoquismo visual, se me entendem. Achei alguns, surpreendi-me e até me horrorizei com as imagens daqueles que não as bloquearam (tempus fugit!). Mas de um, particularmente, eu queria ter notícias, pois foi talvez a pessoa que mais me influenciou com suas maluquices, seu comportamento excêntrico que beirava a insanidade.
 
Não encontrei nada. Lembrei-me então do nome de seu filho, que às vezes encontrava na sala de seu pai. Pesquisei o nome e descobri seu perfil no Facebook. Mandei mensagem para ele identificando-me e pedindo notícia de seu pai. Nunca me respondeu. Há nove dias - seis anos depois da “mensagem na garrafa” -, entretanto, recebi uma mensagem confirmando que é filho de meu amigo, etc.
 
Aí, (pouco) papo vai (pouco) papo vem, disse a ele que tinha as melhores lembranças de seu pai e que seu contato me motivou a escrever sobre as maluquices e tiradas hilariantes que presenciei e ouvi de seu pai. E fiz isso. Rapaz, o resultado foram seis páginas A4 escritas com a fonte Arial 12!
 
Mandei para ele, esperando sua reação. Como os casos são muito engraçados (para mim!), resolvi publicar esse arquivo aqui no Blogson Crusoe. E claro, troquei os nomes para manter a privacidade das pessoas mencionadas. Outra alteração foi no nome da empresa. Há alguns anos as construtoras eram chamadas de "gatinhas" ou "gatonas", dependendo do porte. E foi esse apelido que escolhi. Espero que gostem. 
 
 
Diz meu filho que “boi preto reconhece boi preto”. Acho que ele tem razão, pois as pessoas com quem mais me identifiquei e gostei de conviver sempre foram pessoas pouco convencionais, excêntricas ou alopradas mesmo. Uma dessas pessoas, talvez a que mais tenha me influenciado foi meu chefe na empresa aonde trabalhei quatorze anos.
 
Quando fui admitido, o Orozimbo era o gerente da “Seção Técnica”, setor responsável pela elaboração das propostas apresentadas pela empresa nas licitações de que participava. Provavelmente logo fui apresentado a ele, que deve ter reagido secamente, como era seu estilo.
 
Minha primeira atribuição foi fazer o orçamento de um conjunto de casas populares que ainda seria licitado pelo governo (sentiu a treta aí, né?). Creio que ele deve ter ido à minha sala e perguntado alguma coisa sobre o orçamento, uma obra ridícula e desinteressante para uma empresa acostumada a construir túneis, estradas, barragens e obras industriais. Lembrando-me de seu comportamento lúcido e desencantado, deve ter criticado a idiotice de tentar direcionar uma obra vagabunda e não estratégica para a construtora.
 
O tempo foi passando e eu comecei a perceber seu histrionismo, suas observações gaiatas e certeiras. Creio que foi em 1982 que nosso relacionamento se estreitou mais, pois passei a trabalhar diretamente com ele na elaboração da proposta comercial para construção de Angra 3 (essa mesma, a do Petrolão, até hoje inacabada). Pelas exigências mirabolantes do edital, as piadas e comentários ferinos ou hilariantes foram surgindo a todo momento, fazendo com que eu me lembre de ter sido essa a época em que mais me diverti.
 
INFÂNCIA
Mesmo que na ordem cronológica correta devo ter ouvido este caso quando já tínhamos mais intimidade. O Orozimbo nasceu no sul de Minas, se não me engano. Disse que um dia, na comemoração de seu aniversário, um amiguinho chegou com uma galinha viva. Recusou-se a aceitar o “presente”. Como o menino talvez insistisse, pegou a galinha e a atirou pela janela (só não tenho certeza da altura da queda da “penosa”).
Outra herança da cidade e que eu achava muito estranha era o fato de dizer “guspir” em vez de “cuspir”.
 
CHICLETE
O Orozimbo tinha uma capacidade absurda de mostrar o real significado de alguém através dos apelidos que colocava, mais pegajosos que chiclete em passeio público, pois grudavam de forma definitiva, Lembro-me de três criados na época da licitação de Angra 3. Uma das exigências do edital era ter a consultoria de empresa que já tivesse construído uma usina nuclear. No Brasil só a Odebrecht podia exibir esse know-how, mesmo que a tecnologia da usina vagalume de Angra 1 fosse americana, diferente da tecnologia alemã de Angra 2 e 3. O primeiro passo foi encontrar uma empresa estrangeira que se dispusesse a entrar nessa canoa com a “Gatona”. Para encurtar a conversa, uma construtora alemã aceitou a parceria e enviou dois engenheiros para o Brasil. Um deles falava espanhol, pois era o gerente da empresa para a America Latina. O outro, só na base do heinsbein, as aftas ardem e doem, coisas assim, só no alemão.
 
Depois de ser apresentado aos gringos já surgiram os apelidos Grafite e Canetão. A explicação estava no fato do bacanão exibir uma caneta no bolso da camisa, enquanto o monoglota trazia só uma lapiseira. Isso, traduzido por ele, significava que “o Canetão só assina cheque, quem trabalha mesmo é o Grafite”. 
 
Ainda melhor foi o apelido que deu ao consultor de garantia da qualidade. Um dia, meio irritado, perguntou se eu tinha visto o “Ventania”. Perguntei quem era, já esperando a próxima maluquice.
- Você não sabe quem é o Ventania? É o consultor da garantia.
- Por que Ventania?
- Esse cara só está vendendo vento, e vendendo caro! E o Zé Antônio (o gerente) está em órbita, pois ele acha que esta empresa fará tudo o que estão dizendo. Pior é que não é uma órbita perfeita, porque o vento soprado é muito forte. 
 
Comecei a rir e ele continuou:
- Você que é bom em desenho podia desenhar essa situação. Olha só, o planeta é a empresa. O satélite em órbita é o Zé Antônio. Aí você faz uma órbita ondulada para ele, porque o Ventania está atuando.
 
Ele realmente achava que o consultor, por não ter experiência anterior com esse tema, estava nos fazendo de trouxas. Talvez sim, talvez não. O que sei é que, depois de um tempo, até o diretor técnico perguntava ao Zé Antônio como estava indo o trabalho com o Ventania.
 
Como era uma exigência do edital, o Manual de Procedimentos para a Garantia da Qualidade começou a ser gestado. Dá para adivinhar qual era o primeiro procedimento? Ninguém se habilita? Era “Como elaborar um Procedimento”. Era o suprassumo da burocracia atuando na área de qualidade. E o Orozimbo, dono de uma visão extremamente fria e desencantada do que nos esperava, caía de pau.
 
Na visita que fez a Angra 1 ficou observando uma movimentação de pedra britada. Sem motivo aparente, um equipamento retirava a brita de um pátio e transportava para outro, bem ao lado. Perguntou a quem o acompanhava o que essa movimentação significava. A resposta foi de que no primeiro monte a brita ainda não tinha a garantia da qualidade assegurada, enquanto que o segundo depósito já estava OK. Aí ele emendou de primeira:
- Então, apesar da garantia, a brita do segundo monte é pior, porque na movimentação de um lado para o outro, o equipamento raspa um pouco o chão e leva terra junto com a brita! 
 
O fiscal ficou com cara de cachorro que peidou na igreja, sorrindo sem graça, diante da observação na mosca.
 
Engraçado demais era quando ele resolvia avacalhar de uma vez os procedimentos dessa garantia da qualidade. Aí falava que a empresa precisaria mandar fazer carimbos para carimbar cada pedrinha aprovada, ou ao imitar um hipotético fiscal da qualidade acompanhando visualmente a corrida dos vergalhões de aço na siderúrgica. Tudo iria bem até um pilar do galpão atrapalhar a visão do coitado. E nós dois ríamos até mandar parar.
 
 
O HÉLICE
Às vezes ele comentava que a empresa só crescia à noite, quando não tinha ninguém para atrapalhar. Como "ninguém", entenda-se: diretores e gerentes. Um dia, a propósito de mais uma maluquice ligada à proposta em elaboração, comentou que o "Hélice" devia estar girando muito. Já imaginando alguma sacanagem, perguntei de quem estava falando.
- Você não sabe quem é o Hélice? É o "Sô Arcindo"! Toda vez que alguém faz uma burrada na empresa ele dá um giro dentro da sepultura. Ultimamente, deve estar sendo usado como ventilador pelos "morto".
 
Caguei de rir, pois o "Sô Arcindo", como falou fazendo sotaque caipira, era o fundador da empresa, falecido uns trinta anos antes.
Só para completar este tópico, lembro a discussão semântica sobre o uso das preposições "de" e "do" na área da qualidade. O gerente Zé Antônio era enfático e professoral ao “exigir” seu uso correto.
- Ô Zé, não se pode dizer “garantia de qualidade”?
- É claro que não! O correto é dizer “Controle de Qualidade” e “Garantia da Qualidade”!
 
Eu compartilhava a visão desencantada do meu chefe e achava tudo isso um porre, uma viadagem só. Mas me divertia pra caramba.
 
 
JOÃOBATISTANDO
Outra lembrança desse sujeito era sua capacidade de fazer humor só alterando palavras ou usando nomes próprios para criar verbos. Um dia ele chegou à porta da minha sala e perguntou o que eu estava embotelhando (ou botelhando).  Achei graça da maluquice, mas daí uns dias até o diretor me perguntou entre risos o que eu estava botelhando. Foda!
 
Às vezes ele caminhava no limite da normalidade, passando a imagem de ser quase um doido manso, de tão excêntrico. Mas era brilhante, genial e engraçadíssimo. Via os problemas da empresa com uma clareza absoluta, mas emitia suas opiniões do jeito mais caricato ou destemperado possível. Eu ria até mandar parar com seu estilo ensandecido e anárquico. O diretor a quem era subordinado ria também, mas tinha certeza da seriedade da essência dos comentários. O mesmo parecia não acontecer com alguns gerentes, que riam sem prestar muita atenção nas análises feitas por ele.
 
Um dia comentei que ele deveria expor suas críticas e análises certeiras de forma menos enlouquecida, pois mesmo que tivesse uma espécie de visão de raios-X que lhe permitia ver com clareza o que todos demoravam a enxergar, as pessoas riam de seu comportamento aloprado em vez de prestar atenção ao que dizia. Para reforçar o conselho, disse-lhe que agindo assim ele estaria lembrando São João Batista, "a voz que clama no deserto".
- "João Batista, é?", foi a reação que teve. Mas deve ter gostado da comparação, pois um dia, à porta de minha sala, disse que estava "joãobatistando" alguma coisa.
 
Ele era o responsável oficial por fazer as reivindicações (claims) para alterar ou aditar os contratos. Mesmo sem usar linguagem rebuscada ou malabarismos lógicos, era extremamente eficiente na simplicidade com que apresentava o choro da empresa. Sempre havia aquele papo de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro, etc.
 
Algumas vezes, valia-se de um artigo escrito por Hely Lopes Meirelles, um jurista fodão, tão competente que, segundo meu amigo Pintão, seria até meio desacreditado, pois argumentava com a mesma eficiência tanto a favor como contra qualquer coisa, dependendo da fonte pagadora.
 
Pois bem, nesse artigo havia referência a uma firula jurídica conhecida como "rebus sic standibus", que não vem ao caso detalhar aqui (na Wikipédia tem). A graça desse caso é que ele, ao tratar com o diretor dizia de forma gaiata coisas como - "Você quer que use o sic rebustandi"? Não tinha como não rir dessa besteira (e o diretor ria muito).
 
 
TESTE PARA GERENTE
Às vezes ele gostava de provocar os gerentes que iam à sua sala com alguma pegadinha. Um dia ele montou uma matriz de terceira ordem e perguntou a um gerente que ele considerava muito burro como calcular aquilo (o determinante). A resposta só confirmou a avaliação que fazia do sujeito:
- Ah, eu não lembro mais como se calcula um “discriminante”.
Esse episódio me foi contado entre risos.
 
 
TESTE PARA DIRETOR
Nosso diretor técnico era um gênio da engenharia, o melhor engenheiro que tive a oportunidade de conhecer, pois aliava o conhecimento prático obtido na supervisão de obras com uma bagagem teórica riquíssima e uma inteligência privilegiada. Por isso, o Orozimbo guardava em uma “pasta tipo Ivan” tudo o que ele escrevia ou tinha inventado e patenteado ou estudado. Um desses guardados era um sofisticadíssimo estudo teórico para o funcionamento de um mineroduto. Coisa de gênio mesmo.
 
Pois bem, um dia, estando o diretor e um gerente sentados à sua frente, ele pegou o tal estudo, copiou uma fórmula toda cabulosa desenvolvida pelo diretor e disse ao gerente:
-Teste para diretor! Se você conseguir resolver esta equação você pode ser diretor.
 
O gerente puta velha riu e disse que não sabia. O diretor olhou a fórmula e caiu na rede:
- Então eu sirvo para diretor!
 
E começou a desenvolver o assunto, sem se lembrar de que era ele o autor. O Orozimbo disse que foi acompanhando na pasta a sequência do raciocínio feita ali na hora. E aí deu a estocada final:
- É claro que você sabe, foi você que fez esse estudo!
 
E os três racharam de rir.
 
 
MATANDO DE SUSTO
Às vezes eu me perguntava se o Orozimbo não seria autista ou esquizofrênico, porque 100% normal não podia ser, não parecia ser – apesar da impressionante lucidez e clareza de seu raciocínio. Esse caso me foi contado por quem quase morreu de susto (maneira de dizer!) com a reação do “Oroz”. Esse colega tinha acabado de ser transferido para nosso setor e recebeu um edital de uma licitaçãozinha para trabalhar. Não me lembro se era da Vale ou da Petrobrás. O Orozimbo já não era mais o gerente, creio que já ocupava o cargo de diretor técnico adjunto. Cumprimentou o novo colega e perguntou que estava fazendo. Ao saber da nova licitação, pegou o edital e perguntou:
- Sabe o que deveria ser feito com esse edital?

E imediatamente o arremessou na lata de lixo, diante do olhar espantado do colega. E continuou exaltado:
- Sabe o que a empresa deveria fazer? Pegar todos os catálogos telefônicos e arrancar deles a página onde tiver o endereço da Vale (Petrobrás?), para ninguém nunca mais perder tempo com isso!
Aí pegou o edital, devolveu para o ainda atônito colega e disse com voz calma:
- Pode continuar com seu trabalho.
 
 
PLEIN DE MERDE
Um dia, durante uma tarefa que estávamos executando, perguntou-me de chofre:
- Você acredita que o inferno existe?
 
Ri da pergunta e desconversei, talvez dizendo um "sei lá!" Mas ele estava disposto a continuar com esse assunto, e voltou à carga:
- Eles falam que o inferno é um lugar muito quente, onde as pessoas são queimadas e espetadas pelos demônios, não é?
- Ah, sei lá, nunca me preocupei com isso. Deve ser!, respondi.
 
Aí, entre risos, descreveu sua versão do inferno, fazendo com que eu também chorasse de rir por conta dessa maluquice doentia:
- Para mim, o inferno deve ser um tanque ou piscina cheia de merda até a borda, onde as pessoas ficam mergulhadas, deixando de fora só a cabeça. Apoiada na borda, oscilando pra lá e pra cá, há uma lâmina afiada deslizante. Quando ela vem se aproximando o pessoal grita – “Olha a lâmina!” e todo mundo mergulha a cabeça. Você que é bom de desenho podia projetar essa piscina.
 
 
HAROLDO, DORIVAL E COMPANHIA LIMITADA
Antes do Orozimbo, o gerente do setor onde trabalhávamos tinha sido o Ivan, que deixou a empresa para trabalhar na Andrade Gutierrez. Ele gostava de arquivar coisas em pastas de papelão realmente muito práticas, em formato maior que papel ofício, dotadas de garras de abrir e fechar com mola, como se fossem os antigos encadernadores de ginásio. Essas pastas receberam do Orozimbo o nome de “pasta Ivan” ou “tipo Ivan”, que todo mundo passou a usar.
 
Em uma delas eram guardadas as provas das tolices escritas pelos engenheiros da empresa. O título dessa pasta “homenageava” os toupeiras máximos que já haviam trabalhado na “Gatona”. Às vezes as burradas não eram percebidas de imediato por quem as lesse, mas a “tradução” feita pelo Orozimbo era sempre de rolar de rir, como quando alguém do escritório de São Paulo pediu “uma cópia completa das normas da ABNT”. A lista obtida foi parar na pasta, pois era realmente a relação completa de todas as normas brasileiras (normas para tintura de tecidos e todas as coisas normatizáveis que nada tinham a ver com engenharia).
 
Outro documento hilário era uma ata de reunião para esclarecimento de dúvidas de uma licitação em andamento. As empresas apresentaram suas dúvidas, os esclarecimentos foram registrados em ata, etc. O representante da “Gatona” também apresentou sua dúvida. Inacreditavelmente, perguntou o significado no edital da palavra “similar”. E a resposta foi “similar significa exatamente isso, similar”. O comentário do Orozimbo foi demolidor:
- Acho que ele ficou com vergonha de não ter nada para perguntar e quis saber o significado da palavra “similar”.
 
 
ATLETA
Por recomendação médica, o Orozimbo acabou transformando-se em corredor de rua. Um dia pediu meu endereço, dizendo que iria me fazer uma visita.  Achei graça, pois o percurso entre sua casa e a minha deve ter uns cinco ou seis quilômetros.
 
No dia seguinte chamou-me à sua sala e mostrou um desenho indicando as características do muro de nossa casa. Fiquei pasmo. Tempos depois, pela manhã, antes de sair para trabalhar, a campainha tocou. Fui ver quem era. Era ele, todo paramentado de atleta, saltitando no mesmo lugar. Disse qualquer coisa sobre eu não ter acreditado que viria correndo, virou as costas e retornou. Dez ou doze quilômetros percorridos por um legítimo “street runner”. Figuraça!

 

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