segunda-feira, 17 de julho de 2023

MEU CORAÇÃO É DO TAMANHO DE UM CACHORRO

 
Meu coração é do tamanho de um cachorro. Uma frase dita assim pode levar alguém a pensar que estou delirando. Mesmo que em tempos recentes e devido ao cansaço e impossibilidade de dormir eu tenha tido pensamentos delirantes, não estou delirando agora. Este título surgiu por causa de um cãozinho abandonado que vi ao passar de carro por uma rua deserta.
 
Essa rua tem apenas uns cem metros de comprimento e é ocupada por um estacionamento abandonado, um ginásio utilizado apenas em alguns fins de semana, dois imóveis comerciais vazios, um lote vago e apenas um pequeno prédio de seis apartamentos. Essa situação de quase abandono tem atraído a atenção de dois ou três moradores de rua que a utilizam para dormir deitados sobre caixas de papelão e pedaços de espuma.
 
Por morar em rua de mão única eu sempre a utilizo para retornar ao interior do bairro ou para encurtar caminho quando pretendo ir em direção ao centro da cidade. E foi em uma dessas vezes que eu o vi. Tinha a aparência de assustado, talvez esperando que o antigo dono aparecesse para levá-lo de volta para a casa de onde fugiu ou de onde saiu por um portão mal fechado para explorar este vasto mundo.
 
Além da visível perplexidade e movimentos indecisos, o que mais chamou minha atenção foi o fato de ser muito gracioso, com orelhas longas e pontudas e usar no pescoço uma corrente de grossos elos, mais apropriados para conter um rottweiler, nunca um cãozinho com a aparência de ser muito dócil..
 
Diminuí tanto a velocidade do carro para vê-lo que ele ficou me olhando com a cabeça meio inclinada, talvez esperando que fosse eu o seu salvador. Naquele dia, embora fosse pouco mais de seis da manhã, eu estava particularmente triste, incomodado e comovido com a quantidade de pessoas em situação de rua que tenho visto pelo bairro. Não sei precisar quantos, mas são muitos, geralmente homens, provavelmente prisioneiros do crack.
 
Mesmo sabendo que talvez estejam nessa vida pelas escolhas horríveis que fizeram não consigo deixar de sentir pena, muita pena por essa situação de abandono e desamparo, ainda mais agora, nesta época de baixas temperaturas. E foi esse mesmo sentimento que o cãozinho despertou em mim.
 
Tentei encontrar seu dono através de um perfil coletivo do Facebook, disse onde o tinha visto e dei alguns detalhes sobre sua aparência – de raça indefinida, pequeno, gracioso, pelo branco, com uma grossa corrente no pescoço, etc. Algumas pessoas responderam dizendo tê-lo visto em outras ruas e teve até uma alma caridosa que o alimentou e até publicou uma foto sua, mas o antigo dono nunca apareceu.
 
Um dia sumiu. Passei várias vezes pela rua para tentar vê-lo, mas nada. Imaginei que talvez tivesse reencontrado o antigo dono ou sido adotado por um novo, atraído pela visível docilidade e beleza do cachorrinho. Confesso que senti um pouco de alívio pela possível solução do problema e uma ponta de inveja do sortudo que o acolheu.
 
Nunca tive tanta vontade de possuir um cachorro! Não um cachorro qualquer, de alguma raça de nome pomposo e que custa uma pequena fortuna. Não, tudo o que eu queria era aquele cãozinho de olhar assustado, só para dar a ele o carinho que talvez tenha se acostumado a receber. Meu coração dói ao pensar nas privações que sofrem os moradores de rua, mas não tenho condições de ajudá-los. Talvez por isso eu tenha canalizado meus sentimentos para um novo morador de rua, um cãozinho bonitinho e abandonado.
 
Anteontem eu o revi na mesma rua, mas alguma coisa mudou em seu comportamento. Estava sem a corrente no pescoço e demonstrou ter medo sabe lá Deus de que, pois saiu em disparada quando entrei na ruazinha. Diminuí a velocidade para vê-lo, mas ele correu mais um pouco e se apertou entre as barras da grade de um dos prédios abandonados, numa clara tentativa de se proteger.
 
Tudo bem, cachorrinho, mesmo que eu não possa tê-lo para me fazer companhia, jamais lhe faria mal. Talvez você tenha mais sorte que os moradores de rua que dormem sobre caixas de papelão. Só espero que a nova vida de cachorro vadio lhe seja leve.



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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4