Recebi de um de meus filhos um link que me transportou para o artigo abaixo, de autoria de Wilson Gomes, doutor em Filosofia e professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA. Foi publicado em 28/01/2022 na revista Cult. Jamais poderia sugerir sua leitura para quem admira o astrólogo, mas para aqueles que como eu, o odiavam e desprezavam, a leitura é muito boa para colocar alguns pingos nos is. Olhaí.
Nesta semana morreu pela última vez Olavo de
Carvalho. Já havia sido dado por morto algumas vezes, inclusive politicamente,
mas esta foi a derradeira. Morreu “por cima”, embora em evidente decrepitude,
pois poucos ideólogos tiveram a fortuna de falecer enquanto seus alunos e
seguidores assentavam-se no trono ou se espalhavam pela corte como vencedores.
Há de ser por isso que foi objeto de uma das
raras manifestações de pesar emanadas pelo presidente da República, que
decretou um dia de luto oficial e declarou que havia morrido um gigante na luta
pela liberdade e um farol para os brasileiros. Todos sabem o quanto Bolsonaro e
o bolsonarismo lhe devem, mas essa relação era complicada.
De uma maneira paradoxal, Olavo de Carvalho
foi efetivamente um sujeito brilhante, a começar pela habilidade de autopromoção.
Um homem que, a despeito de ser versado apenas em astrologia e autoindulgência,
conseguiu convencer milhões de adultos, dentre os quais uma dúzia de pessoas
razoavelmente inteligentes, de que era um pensador profundo e original.
Não era. Era um leitor tendencioso,
superficial e de interpretações forçadas do pensamento alheio, e, sobretudo,
era um escritor de pensamento confuso, raso e contraditório que citava muito e
assimilava nada. Era basicamente um autodidata, portanto, sem formação
consistente no sentido estrito do termo, que escolhia as obras que lia segundo
suas intenções beligerantes, e as lia apenas para confirmar o seu ponto de
vista ou para refutar o que se chocava com suas crenças. Nunca para realmente
entendê-las. Seus livros, que os seus leitores e alunos consideravam uma obra
filosófica, consistiam em uma constelação de disparates, erros grosseiros e
interpretações distorcidas, capazes de enfurecer qualquer especialista nas
obras que ele citava. Olavo estava para a filosofia como um auxiliar de
pedreiro para a engenharia civil, as intenções são as mesmas, mas há alguma
diferença no acúmulo e manejo do conhecimento.
Por outro lado, escrevia e falava como um
pregador que conhecia bem o coração do seu auditório e sabia para onde levá-lo.
Sobretudo porque dele se acercavam outros autodidatas, gente sem formação nem
discernimento, aquela típica população em que o sujeito nem é muito estúpido
nem muito inteligente, até se vira com ideias e leituras, mas é incapaz de uma
interpretação profunda e de perceber contradições e falácias. Nem tem
instrumentos intelectuais para contestar o mestre. Por isso a anedota corrente,
atribuída a Ruy Castro, não sei se é verdade, de que Olavo era considerado um
imbecil pelos filósofos e um filósofo pelos imbecis. Assino embaixo da primeira
parte.
Por mais de 30 anos, Olavo foi uma espécie de
napoleão de hospício: alucinado, preso em seus devaneios e com delírios de
poder. Considerava-se imenso e o repetia com despudor. Mas foi um napoleão que
conseguiu convencer todo o sanatório, médicos e enfermeiros inclusive, de que
era o próprio Bonaparte. Olavo suspeitava que era o Deus Optimus Maximus, seus
seguidores têm certeza disso. Sorte a dele, pois como se diz naquele ditado
romano, beati monoculi in terra caecorum.
Por isso mesmo, foi tão influente. Olavão
teve o mérito de coletar todos os delírios da direita norte-americana,
empacotá-los de maneira atraente para os conservadores brasileiros, dar-lhes um
verniz pretensamente intelectual, com o famoso truque da chuva de citações,
como se decorressem de investigações profundas e de reflexões densas e
originais. Com isso, o maluco à cata de uma causa, o conservador complexado que
se orientava por sentimentos reacionários, mas não tinha argumentos para
sustentá-los, o fanático fundamentalista político que precisava situar o seu
ódio em algum projeto existencial, o wannabe intelectual carente de um mestre,
toda essa gente passou a ter um eixo, uma agenda, um conjunto de crenças que
estruturavam minimamente a nebulosa de sentimentos e intuições que habitavam.
Esse foi um papel exercido de forma magnífica
por Olavão, que representou muito bem o personagem do profeta destemido e
desbocado, afrontoso e planejadamente desagradável, cujo estilo era baseado no
insulto, no insistente autoelogio e na degradação dos adversários. A polêmica
na sua forma mais vulgar, a da briga de rua, do vale-tudo, da difamação do
adversário, era base do seu estilo. Olavão era o rei do ad hominem, o
príncipe do xingamento, o imperador dos impropérios. E ai de quem fosse por ele
transferido do catálogo de seguidores e aliados para a caixa dos ingratos,
traidores e detratores, tratado doravante por apelidos degradantes e objeto dos
ataques e da fúria do mestre que os excomungara.
Por outro lado, Olavo de Carvalho antecipou
em mais de uma década a transformação digital da pregação e da discussão
política. Quando os intelectuais brasileiros consideravam “a internet” uma
coisa elitista, sem alcance e esvaziada de sentido, Olavão já estava fazendo
discípulos e aliciando para os seus cursos online no Orkut. Pelo menos uma
década antes que a expressão “influenciador digital” aparecesse no jornalismo
popular, Olavão já doutrinava no YouTube. Olavo plataformizou a formação de
seguidores quando isso tudo ainda era mato.
Por fim, devo dizer que se engana, contudo,
quem acha que o olavismo é igual ao bolsonarismo ou que exista uma continuidade
entre uma coisa e outra. É certo que o olavismo precedeu em mais de duas
décadas o bolsonarismo, é exato considerar que Olavo foi uma espécie de João
Batista para Jair, mas entre os dois há continuidades, sim, mas muito mais
descontinuidades.
Primeiro, o bolsonarismo é um movimento
social e uma forma de militância, o olavismo é uma ideologia ou, para não lhe
conceder mais do que merece, um conjunto de premissas ideológicas que vertebrou
o bolsonarismo. Se é demais dizer que moldou o pensamento bolsonarista (o
bolsonarismo dificilmente pode ser acusado de pensar), pelo menos lhe deu os
slogans, as palavras-chaves, as figuras do imaginário e uns scripts
fundamentais para usar nas suas histórias e nos complôs que imagina. Sem falar
na inspiração para a afronta, para uma atitude beligerante perpétua, para
transformar todos os críticos em comunistas, para ganhar discussões sem ter
razão, à base de ofensas, palavrões e acusações.
Segundo, mesmo quando o olavismo conseguiu se
institucionalizar, com olavistas ocupando, por exemplo, postos-chaves nos
Ministérios da Educação ou das Relações Exteriores, isso durou pouco, pois não
resistiu ao conflito com outras forças políticas que competem no interior do
bolsonarismo, como os militares e os partidos fisiológicos de direita. Logo,
logo, o “núcleo ideológico” do governo, o olavismo institucional, foi
abandonado.
Por isso mesmo é que Olavão morreu brigado
com Bolsonaro. Ele não só já não era mais necessário ao governo, como havia se
transformado em um estorvo para os Bolsonaros, com seu ego imenso para o qual
eles tudo lhe deviam e não pagavam como era de se esperar, com a sua enorme
capacidade de fogo cerrado contra quem há pouco era amigo, com a sua habilidade
para procurar brigas e fazer inimigos.
Terceiro, Olavo era de certo modo muito mais
radical que Jair. Por seu desejo expresso, isso aqui já era para ser uma
ditadura militar faz tempo, com esquerda fuzilada, prisão e tortura de
opositor. Ele achava os militares uns frouxos e Bolsonaro um incapaz, além de
pouco inteligente, ambos por não terem radicalizado a conquista do poder pela
direita conservadora. É que Olavo, diferentemente de Bolsonaro e dos militares,
vivia perenemente no mundo da vontade e da representação. Tinha, portanto, a
liberdade de vociferar o que quer que lhe passasse pela cabeça. Cabeça esta que
morreu sem jamais ter sido visitada por qualquer ideia democrática, republicana
ou liberal. Por fim, Olavo desprezava a inteligência de Bolsonaro e dos
bolsonaristas. Achava-os incapazes e estúpidos e repetia isso toda a vez que
não se sentia reconhecido ou recompensado. Quanto a isso… bem, sobre isso não
há dúvida, tenho que concordar, enfim, com os seus discípulos: Olavo tem razão.
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