quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

FOI BOM ENQUANTO DUROU?

Quem leu o post anterior pode se perguntar o que fazíamos no terreno de minha avó e se nos divertíamos. Pela distância a percorrer a pé até chegar ao terreno, creio que só fomos para lá durante algumas férias escolares, pois (para mim, pelo menos) não valeria a pena esse deslocamento só para passar um fim de semana ali. Com exceção da última vez, posso dizer que tive alguns momentos de diversão naquele fim de mundo.
 
E as lembranças são decorrentes de minha memória visual, que é bastante boa. Mas este relato não é um inventário para fazer um balancete ou prestação de contas. Por isso, para não tornar a leitura muito enfadonha tentarei resumir um pouco os episódios que poderiam ser classificados como "diversão".
 
Nunca levávamos qualquer tipo de brinquedo quando íamos ficar uns dias naquele barraco. E o motivo é simples: além de não possuirmos nada que valesse a pena levar, ainda havia o problema logístico provocado pela distância a percorrer a pé (sacolas com roupas, mantimentos, papel higiênico - provavelmente) e sei lá mais o quê que fosse essencial para a sobrevivência em Marte.
 
Por isso, uma diversão garantida era sair com minha mãe e meu irmão para explorar as redondezas do terreno, caminhando sempre na direção da fazenda do primo de minha mãe. Quatro lugares merecem destaque. O boqueirão que definia um dos limites do terreno é um deles, pois tinha para mim uma aura de filme de aventuras, um misto de Tarzan com Viagem ao Centro da Terra. Graças à sua erosão diferenciada, podíamos descer sem muita dificuldade até o fundo arenoso da vala. As raízes dos arbustos parcialmente expostas, as imensas teias de aranha, a sinuosidade esculpida pelas enxurradas, o silêncio e a alternância de sombras e luz nas paredes quase verticais mexiam muito com minha imaginação.
 
Outro lugar que também mexia comigo era a estrada abandonada que cortava o terreno em dois. Eu achava o máximo que minha avó tivesse um trecho de estrada só dela. Andando por essa estradinha às vezes nos deparávamos com algum buraco arredondado na borda mais elevada do terreno, que minha mãe dizia ser toca de coelho ou tatu e que não deveríamos mexer nela.
 
O terceiro foi descoberto em um dia em que resolvemos caminhar até umas mangueiras que podiam ser vistas à distância quando estávamos na parte mais alta do terreno. Levamos duas sacolas com finalidades distintas: uma para carregar as mangas que eventualmente conseguíssemos apanhar; e a outra..., bem, a outra era para catar e carregar a bosta seca de vaca que encontrássemos pelo caminho (se quiser, pode trocar por estrume de vaca). As mangueiras ficavam bem distantes do terreno de minha avó e em lugar mais favorável ao seu desenvolvimento. Já a bosta seca de vaca era encontrada esporadicamente. Minha mãe guardava em uma sacola esse "precioso insumo" para depois transformá-lo em esterco  a ser aplicado nas mudas de laranjeira recém-plantadas. Foi quando nos deparamos com aquela paisagem incrível, lunar.
 
Diante daquela erosão o boqueirão que conhecíamos era filhote. Naquele lugar, as sucessivas temporadas chuvosas tinham criado um verdadeiro cânion, de tão largo que era. Imagino que deveria ter uns quinze metros de largura, mas não tenho certeza se minha mãe se animou a nos deixar descer até o fundo da grota gigantesca.
 
O quarto e último lugar a merecer destaque foi um galpão existente na propriedade dos Calaboca. Imagino que minha mãe deve ter ido tentar comprar hortaliças ou verduras dos vizinhos. Quem nos recebeu era um homem simples e humilde, de sorriso largo, vestido com roupas que lembrariam o caipira de Mazzaropi ou o "Nerso da Capitinga". Ele e sua esposa conversaram um pouco com minha mãe e nos levaram para conhecer o galpão onde fabricavam rapadura. Fiquei super impressionado com o tamanho gigantesco do tacho de cobre onde o caldo da cana era fervido. Não conheço o processo, apenas me lembro de que o Calaboca pegou uma faca e desplacou da borda do tacho uma lasca de rapadura remanescente do último preparo. Ah, e eles tinham uma lagoinha dentro de sua propriedade. Chique pra caramba.
 
Mas deixei para o final os dois melhores episódios, protagonizados por meu pai. Naquela época, quando ele ainda estava sem emprego e ralava para pagar agiotas (poderia dizer que ralava para rolar as dívidas antigas da sociedade com os irmãos falecidos) e até para comprar cigarros ou pegar um bonde, às vezes aparecia no Purgatório. Imagino que isso acontecia quando estávamos apenas eu, meu irmão e nossa mãe. Dada a indigência e precariedade das acomodações imagino também que era na base do “ou ele ou minha avó”. Nós três mais minha avó e meu pai talvez caracterizasse superlotação do barraco.
 
Mas duas das vezes em que passou uns dias conosco foram especiais. Ele não sabia nadar, mas, para nos divertir, resolveu construir uma piscina. Sem dinheiro para pagar ajudantes, começou ele mesmo a escavar o terreno. À medida que o serviço avançava, comecei a estranhar o formato do buraco. Para começo de conversa, a piscina não tinha cara de piscina, pois era um tronco de pirâmide invertido, com os lados superiores talvez medindo 1,50 m e só uns 40 cm de profundidade.
 
Concluída a escavação da piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina, meu pai começou a impermeabilizar as laterais e o fundo, aplicando uma camada de argamassa diretamente sobre o solo. Depois de seca essa massa, só faltava encher a "piscina". Com qual água? A que era tirada da cisterna, logicamente. Para simplificar, imaginem que o volume de água  necessário para encher a piscina seria da ordem de 500 litros - ou mais de 30 latas com 15 litros cada, a ser tiradas no muque de uma cisterna de oito metros de profundidade, uma tarefa super cansativa. Mesmo assim, foi isso que meu pai fez.
 
Assim que a água fria começou a ser jogada no buraco, eu e meu irmão entramos na "piscina". Que logo ficou suja, pois sem nenhuma proteção ou isolamento para impedir, a terra da borda era carregada pelos pés molhados. Outro defeito era a aspereza do revestimento; qualquer movimento mais estabanado significava uma ralada na pele. Assim, apesar do trabalhão que meu pai teve para construí-la, sua piscina teve vida efêmera. O esforço para enchê-la era muito grande e sujávamos a água rapidamente, além de ser muito pequena para fazer qualquer coisa que não fosse ficar sentado ou ajoelhado.
 
E o caso final é este: um dia, quando já estávamos no terreno, meu pai chegou carregando quatro rodas de madeira, que utilizou para construir um carrinho para nós. Era exatamente igual aos conhecidos carrinhos de rolimã, inúteis e contraindicados para um terreno que era terra pura. Daí a necessidade e adequação das rodas de madeira, que mantinham o carrinho mais alto e à prova de atolamento. 
 
Depois de concluído o carrinho (que tinha até freio), ainda roçou o mato para fazer uma pista com uns quinze a vinte metros de comprimento. Mostrou-nos como pilotar o "bólido" e a partir daí foi “pau na máquina”. No começo, descíamos a rampa segurando o freio; à medida que fomos nos acostumando, começamos a descer de forma "despingolada", "na banguela", só puxando o freio no finalzinho, para não arrebentar a cara na parede do barracão. Numa manobra mal feita "capotei" com carro e tudo, ganhando uma pequena cicatriz no pulso que  durou anos para desaparecer.
 
Curiosamente, logo nos cansamos do carrinho, pois seu maior defeito era ter de levá-lo até o alto do morro. Afinal, como ensina o ditado, se para baixo todo santo ajuda, para cima é que a coisa muda. E já que estamos na base do clichê, poderia, pensando no carrinho, dizer que tudo o que é bom dura pouco. Mas como eu já escrevi demais, imagino que os eventuais leitores já devem estar de saco cheio, detestando a ruindade deste texto. Mesmo que seja tarde para reclamar. Ou não. Afinal, antes tarde que nunca, não é mesmo?
 

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