Quem leu o post anterior pode se perguntar o
que fazíamos no terreno de minha avó e se nos divertíamos. Pela distância a
percorrer a pé até chegar ao terreno, creio que só fomos para lá durante
algumas férias escolares, pois (para mim, pelo menos) não valeria a pena esse
deslocamento só para passar um fim de semana ali. Com exceção da última vez, posso dizer que tive alguns momentos de diversão naquele fim de mundo.
E as lembranças são decorrentes de minha
memória visual, que é bastante boa. Mas este relato não é um inventário para
fazer um balancete ou prestação de contas. Por isso, para não tornar a leitura
muito enfadonha tentarei resumir um pouco os episódios que poderiam ser
classificados como "diversão".
Nunca levávamos qualquer tipo de brinquedo
quando íamos ficar uns dias naquele barraco. E o motivo é simples: além de não
possuirmos nada que valesse a pena levar, ainda havia o problema logístico
provocado pela distância a percorrer a pé (sacolas com roupas, mantimentos,
papel higiênico - provavelmente) e sei lá mais o quê que fosse essencial para a
sobrevivência em Marte.
Por isso, uma diversão garantida era sair com
minha mãe e meu irmão para explorar as redondezas do terreno, caminhando sempre
na direção da fazenda do primo de minha mãe. Quatro lugares merecem
destaque. O boqueirão que definia um dos limites do terreno é um deles, pois
tinha para mim uma aura de filme de aventuras, um misto de Tarzan com Viagem ao Centro
da Terra. Graças à sua erosão diferenciada, podíamos descer sem muita
dificuldade até o fundo arenoso da vala. As raízes dos arbustos parcialmente expostas, as imensas teias de aranha, a sinuosidade esculpida pelas enxurradas,
o silêncio e a alternância de sombras e luz nas paredes quase verticais mexiam muito
com minha imaginação.
Outro lugar que também mexia comigo era a
estrada abandonada que cortava o terreno em dois. Eu achava o máximo que minha
avó tivesse um trecho de estrada só dela. Andando por essa estradinha às vezes
nos deparávamos com algum buraco arredondado na borda mais elevada do terreno,
que minha mãe dizia ser toca de coelho ou tatu e que não deveríamos mexer nela.
O terceiro foi descoberto em um dia em que
resolvemos caminhar até umas mangueiras que podiam ser vistas à distância
quando estávamos na parte mais alta do terreno. Levamos duas sacolas com
finalidades distintas: uma para carregar as mangas que eventualmente
conseguíssemos apanhar; e a outra..., bem, a outra era para catar e carregar a
bosta seca de vaca que encontrássemos pelo caminho (se quiser, pode trocar por estrume de vaca). As mangueiras ficavam
bem distantes do terreno de minha avó e em lugar mais favorável ao seu
desenvolvimento. Já a bosta seca de vaca era encontrada esporadicamente. Minha
mãe guardava em uma sacola esse "precioso
insumo" para depois transformá-lo em esterco a ser aplicado nas
mudas de laranjeira recém-plantadas. Foi quando nos deparamos com aquela
paisagem incrível, lunar.
Diante daquela erosão o boqueirão que
conhecíamos era filhote. Naquele lugar, as sucessivas temporadas chuvosas
tinham criado um verdadeiro cânion, de tão largo que era. Imagino que deveria
ter uns quinze metros de largura, mas não tenho certeza se minha mãe se animou
a nos deixar descer até o fundo da grota gigantesca.
O quarto e último lugar a merecer destaque
foi um galpão existente na propriedade dos Calaboca. Imagino que minha mãe deve
ter ido tentar comprar hortaliças ou verduras dos vizinhos. Quem nos recebeu era um homem
simples e humilde, de sorriso largo, vestido com roupas que lembrariam o
caipira de Mazzaropi ou o "Nerso da Capitinga". Ele e sua esposa
conversaram um pouco com minha mãe e nos levaram para conhecer o galpão onde
fabricavam rapadura. Fiquei super impressionado com o tamanho gigantesco do
tacho de cobre onde o caldo da cana era fervido. Não conheço o processo, apenas
me lembro de que o Calaboca pegou uma faca e desplacou da borda do tacho uma
lasca de rapadura remanescente do último preparo. Ah, e eles tinham uma lagoinha dentro de sua propriedade. Chique pra caramba.
Mas deixei para o final os dois melhores
episódios, protagonizados por meu pai. Naquela época, quando ele ainda
estava sem emprego e ralava para pagar agiotas (poderia dizer que ralava
para rolar as dívidas antigas da sociedade com os irmãos falecidos) e até
para comprar cigarros ou pegar um bonde, às vezes aparecia no Purgatório.
Imagino que isso acontecia quando estávamos apenas eu, meu irmão e nossa mãe.
Dada a indigência e precariedade das acomodações imagino também que era na base
do “ou ele ou minha avó”. Nós três mais minha avó e meu pai talvez
caracterizasse superlotação do barraco.
Mas duas das vezes em que passou uns dias conosco
foram especiais. Ele não sabia nadar, mas, para nos divertir, resolveu
construir uma piscina. Sem dinheiro para pagar ajudantes, começou ele mesmo a
escavar o terreno. À medida que o serviço avançava, comecei a estranhar o
formato do buraco. Para começo de conversa, a piscina não tinha cara de
piscina, pois era um tronco de pirâmide invertido, com os lados superiores
talvez medindo 1,50 m e só uns 40 cm de profundidade.
Concluída a escavação da
piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina, meu pai começou a impermeabilizar as
laterais e o fundo, aplicando uma camada de argamassa diretamente sobre o solo.
Depois de seca essa massa, só faltava encher a "piscina". Com qual água?
A que era tirada da cisterna, logicamente. Para simplificar, imaginem que o
volume de água necessário para encher a piscina seria da ordem de 500
litros - ou mais de 30 latas com 15 litros cada, a ser tiradas no muque de uma cisterna
de oito metros de profundidade, uma tarefa super cansativa. Mesmo assim, foi
isso que meu pai fez.
Assim que a água fria começou a ser jogada no
buraco, eu e meu irmão entramos na "piscina". Que logo ficou suja,
pois sem nenhuma proteção ou isolamento para impedir, a terra da borda era
carregada pelos pés molhados. Outro defeito era a aspereza do revestimento;
qualquer movimento mais estabanado significava uma ralada na pele. Assim,
apesar do trabalhão que meu pai teve para construí-la, sua piscina teve vida
efêmera. O esforço para enchê-la era muito grande e sujávamos a água
rapidamente, além de ser muito pequena para fazer qualquer coisa que não fosse
ficar sentado ou ajoelhado.
E o caso final é este: um dia, quando já
estávamos no terreno, meu pai chegou carregando quatro rodas de madeira, que
utilizou para construir um carrinho para nós. Era exatamente igual aos conhecidos
carrinhos de rolimã, inúteis e contraindicados para um terreno que era terra
pura. Daí a necessidade e adequação das rodas de madeira, que mantinham o
carrinho mais alto e à prova de atolamento.
Depois de concluído o carrinho (que tinha até
freio), ainda roçou o mato para fazer uma pista com uns quinze a vinte metros
de comprimento. Mostrou-nos como pilotar o "bólido"
e a partir daí foi “pau na máquina”.
No começo, descíamos a rampa segurando o freio; à medida que fomos nos
acostumando, começamos a descer de forma "despingolada",
"na banguela", só puxando o freio no finalzinho, para não
arrebentar a cara na parede do barracão. Numa manobra mal feita
"capotei" com carro e tudo, ganhando uma pequena cicatriz no pulso
que durou anos para desaparecer.
Curiosamente, logo nos cansamos do carrinho,
pois seu maior defeito era ter de levá-lo até o alto do morro. Afinal, como
ensina o ditado, se para baixo todo
santo ajuda, para cima é que a coisa muda. E já que estamos na base do
clichê, poderia, pensando no carrinho, dizer que tudo o que é bom dura pouco. Mas como eu já escrevi demais, imagino
que os eventuais leitores já devem estar de saco cheio, detestando a ruindade
deste texto. Mesmo que seja tarde para reclamar. Ou não. Afinal, antes tarde que nunca, não é mesmo?
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