sábado, 12 de fevereiro de 2022

A HERANÇA

Não sei por quanto tempo o "Purgatório" ficou abandonado, talvez de dois a quatro anos (pois imagino que ninguém nunca mais quis passar alguns dias lá). Só sei que um dia minha avó resolveu ou concordou em vendê-lo. E o pato que comprou aquele capim pegando fogo foi meu pai. Para tentar estabelecer quando essa ideia de jerico foi concretizada - talvez uma das ideias mais infelizes que meu pai teve em toda a vida -, preciso fazer um cruzamento de informações. Vamos lá.
 
Quando minha avó e meu pai fecharam negócio, minha irmã já tinha nascido. Ela nasceu em 1961. Para fazer essa venda minha avó precisaria estar lúcida. Ela morreu em 1972 e tenho quase total certeza de ter começado a exibir sinais de demência uns seis anos antes de sua morte; em 1966, portanto. Por isso, posso estimar que o vacilo de meu pai ocorreu entre 1961 e 1966.
 
E que desejo obscuro teve meu pai ao comprar um terreno de solo árido, topografia desfavorável e no meio do nada? A explicação dada por ele mesmo é tristemente patética e comovente: ele queria que sentíssemos orgulho de ter alguma coisa em nosso nome. Para isso (essa foi sua segunda ideia de jerico), ele registrou o Purgatório no nome dos filhos, dois adolescentes e uma criança de dois a cinco anos de idade. Por mais que fique comovido com esse gesto encharcado de carinho e amor pelos filhos, não posso deixar de comentar os dois equívocos que cometeu de uma só vez.
 
Quando meu pai resolveu comprar esse terreno que estava abandonado desde 1960 ou 1961 (eu estava com dez anos quando caiu aquela chuva de triste memória), ele já tinha arranjado um emprego de químico em uma fábrica de cimento na região metropolitana de BH e devia estar com a situação financeira finalmente controlada. Bem ao seu estilo de não comentar nada ou quase nada sobre sua vida pessoal, seus sonhos e frustrações, decidiu investir sua grana sem falar nada comigo e com meu irmão (mesmo que fossemos apenas dois adolescentes). Creio que eu pouco ligaria  se ele tivesse comprado o terreno e o registrado em seu nome. O erro foi, como disse, passar a escritura no nome dos filhos. Enquanto escrevo isso, bateu uma dúvida: teria ele tomado essa decisão para se proteger de algum antigo e esquecido credor? Nunca tinha pensado nisso, mas não deixa de ser uma hipótese a considerar.

Não sei a reação que tive quando soubemos da novidade . Mas uma coisa fica clara para mim: se sua ideia real era de nos proporcionar algum motivo de orgulho diante dos primos endinheirados (e aqui preciso lembrar que - para mim! - orgulho pressupõe comparação com algo ou alguém), o efeito seria o mesmo de exibir orgulhosamente um calhambeque com o motor queimando óleo para o proprietário de um carro esportivo importado. Que orgulho insensato seria esse? Por isso, nunca senti orgulho por ter me transformado em dono de um terço daquele terreno que passei a odiar, talvez pelo trauma da mega chuva apanhada anos antes, talvez por discordar radicalmente da compra de um terreno inútil.
 
Mais alguns anos se passaram e eu continuava abominando e jamais me sentindo um dos donos daquela coisa. Foi quando meu pai tomou mais uma porrada da Vida, um nocaute definitivo, indefensável. Ou, como meu amigo virtual Ozy diria, um xeque-mate. A fábrica onde trabalhava mudou todo o sistema de produção (alguma coisa de "seco" para "úmido" ou o inverso disso), processos que meu pai desconhecia. Creio que sem perceber, começou a ser avaliado para ocupar uma função de chefia. Entretanto, por achar que estavam desconfiando dele por algum motivo e graças a seu temperamento irascível e gênio bilioso, mandou o colega que o avaliava à puta que pariu. Nota zero em relações interpessoais. Pela desatualização profissional e pela inadequação emocional para assumir um cargo gerencial, foi demitido quando tinha mais de sessenta anos e, para piorar, pouco tempo de contribuição no INSS.
 
Nessa época eu era recém-casado, meu irmão  também já se casara e minha irmã ainda era menor de idade. Um dia, super constrangido, procurou-me e perguntou se eu me incomodaria se ele vendesse o Purgatório. Apesar de cheio de pena dele, devo tê-lo deixado emocionalmente um pouco pior, pois além de dizer que concordava integralmente, deixei claro que nunca tinha me sentido dono daquele terreno. Para quem tentou um dia dar algum motivo de orgulho para os filhos, não deve ter sido essa descoberta um momento de alegria. E paro por aqui. O que aconteceu depois disso eu prefiro não comentar (até por já ter contado em algum post antigo). Não aconteceu nada de pecaminoso ou condenável e que deva ser escondido, apenas faz com que eu novamente morra de pena de meu pai ao revolver essas lembranças. Mas amanhã eu conto o final definitivo dessa história. Fui.
 

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