quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

CONFORTO CINCO ESTRELAS


Este texto é uma continuação da "saga" "Mosaicos da Infância".

Uma das vantagens de ser criança é não ligar muito para comodidades e confortos que tanto agradam aos adultos. E digo isso por não me sentir incomodado de ser levado para passar alguns dias no terreno comprado por minha avó, mesmo que o conforto existente fosse zero. Até onde me lembro, minha avó mandou construir uma edícula ou barracão (tal como chamávamos) de três cômodos em linha, com essa distribuição: quarto, sala/quarto e cozinha (zero reboco em todas as paredes).
 
Imagino que a instalação sanitária (casinha) foi construída à parte, mas essa é uma informação apagada da minha memória. Creio que a "redícula" não tinha janelas e só uma porta com chave. A iluminação noturna era feita com uma ou duas lamparinas de querosene penduradas na parede. Com o tempo, o lugar onde se pendurava a lamparina ficava com uma língua preta de fuligem acima do pavio.
 
A água era retirada de uma cisterna escavada na parte mais baixa do terreno e tinha uns sete metros de profundidade (fundura). Como é comum fazer, para proteger e impedir a queda de coisas ou pessoas no buraco construiu-se um anel de tijolos em volta da borda da cisterna, que ficava coberta com tábuas. Sobre esse anel instalou-se um sarilho acionado a manivela, que puxava o balde cheio da água do fundo do poço.
 
Não sei como era a cozinha nem o que possuia. Provavelmente as panelas devem ter sido compradas  de um "folheiro" que morava perto da casa de minha avó em BH. A partir da chapa das latas de banha ou outro produto qualquer ele fabricava panelas com cabo, leiteiras, canecas, suportes e bicos de lamparina, etc. Com o tempo e uso frequente acabavam enferrujando e ficando pretas por fora. Mas funcionavam bem e eram muito bem acabadas. Os alimentos eram preparados em fogão de lenha (provavelmente) ou fogareiro "Jacaré" à base de querosene. Os banhos eram tomados em bacia ("banho tcheco"), com água aquecida no fogão.
 
Para completar a descrição das "benfeitorias", creio que minha avó plantou algumas mudas de árvores frutíferas (laranjeiras, limoeiros), mas nada vingou, pois o solo não era adequado a esse tipo de plantio. Além do mais, quem regaria as mudas quando não estivéssemos lá? Regar, ninguém regou, pois as mudas foram "transplantadas" para a casa de algum desconhecido. Que só não roubou nada da "mansão" porque não havia nada mesmo que valesse a pena levar. Assim era o Purgatório, um lugar de conforto cinco estrelas.
 
Mas o Paraíso era bem diferente. O Paraíso, ah, o Paraíso... A seguir, um croqui com a distribuição esquemática de áreas e ambientes.



O lugar que eu chamei de Paraíso era uma casa de campo ou de veraneio, uma propriedade à beira da lagoa principal do município. Não sei se ainda pertence hoje à famiglia de meus primos. Só sei que o terreno ocupava metade da quadra onde estava localizado. A avó italiana de meus primos ricos o havia comprado dezenas de anos antes, talvez no início do século XX, para descansar nos fins de semana.
 
Quando a conheci, era uma propriedade espetacular e super bem cuidada. Logo após o largo portão de ferro, o acesso de veículos era ladeado por aleias de fícus podados geometricamente. À esquerda e à direita dessa entrada ficava um pomar, cheio de laranjeiras de várias espécies, limoeiros, mexeriqueiras, limeiras e mangueiras. Próximo à casa havia ainda um abacateiro, que provocava uma cena curiosa: sempre que um abacate maduro despencava lá do alto, o barulho atraía o cachorro do vizinho, que não vacilava - antes que alguém chegasse, ele comia a fruta.
 
Logo à frente do pomar, um gramado super bem cuidado, ótimo para jogar futebol, volei, andar de bicicleta, jogar bentialtas, brincar de pegador e coisas do gênero. Esse gramado "abraçava" a casa, uma construção de dois andares, maior que a casa de minha avó onde morávamos. O andar de cima tinha varanda, três quartos, uma sala/copa ampla, banheiro e cozinha. No andar de baixo havia dois quartos pequenos, um banheiro pequeno, uma área aberta  destinada à lavanderia e um quartinho externo onde eram guardadas as bicicletas. Uma escada interna unia o andar de cima com os quartos e banheiro do piso térreo.
 
Naquela época só havia luz elétrica no centro da cidade, mas isso não era problema ali, pois a iluminação era feita com lampião extremamente limpo e potente, bem diferente das lamparinas enfumaçadas e fedorentas do barraco de minha avó. A água tirada de uma cisterna totalmente fechada era jogada em uma caixa d' água com bomba de acionamento manual.  Quando a caixa enchia, o excesso começava a sair pelo ladrão, momento excelente para se tomar um banho frio de bica. E quem bombeava a água, mantinha o gramado e cuidava do pomar era o caseiro Chico, um senhor humilde já idoso e gente boa.
 
No final do terreno, havia um bosque criado e plantado pela avó italiana de meus primos. Havia vários tipos de árvores e arbustos, mas o que chamava mesmo a atenção era uns quinze pés de eucalipto, árvores altíssimas (20 metros ou mais), que balançavam furiosamente em dias de ventania forte. Por ordem expressa da italiana, o chão do bosque nunca era limpo e nenhuma árvore cortada. Por isso, era uma área muito sombreada e toda coberta por uma camada de folhas e galhos secos que caiam das árvores. Andar sozinho naquele lugar mexia com minha imaginação infantil, fazendo-me pensar em monstros ou fantasmas à espreita atrás de um daqueles imensos e grossos eucaliptos.

Um dia, receoso de que sua casa fosse atingida se um dos eucaliptos próximos à rua quebrasse com o vento, um vizinho pediu para "podar" alguns galhos mais ameaçadores. Mas não havia como cortar esses galhos a mais de quinze metros do chão. Sem comunicação prévia e autorização da avó de meus primos, o vizinho mandou cortar duas árvores (cujo tronco devia ter pelo menos uns 40 cm de diâmetro). Ao saber do corte dos eucaliptos que ela plantara dezenas de anos antes. a velha italiana ficou tão puta e desgostosa que deixou de passar seus fins de semana naquele lugar.

Esse episódio, mais a dispensa ou morte do caseiro e a falta de vontade de meus primos de trocar as festinhas e a agitação do início da adolescência pela calma pasmacenta daquele lugar foram determinantes para o progressivo abandono da propriedade. A grama cresceu, foi invadida pelo capim que ninguém mais se preocupou em arrancar ou cortar; o pomar ficou abandonado, entregue aos passarinhos e aos cuidados que as diferentes estações do ano proporcionavam. Para arrematar, um dia alguém arrombou a casa e levou todas as bicicletas, as espingardas de caça e as varas de pescar. Mas estou me adiantando um pouco.

Antes que isso acontecesse e para uma criança que não tinha nada, aquela casa e o que nela existia eram o contraponto exato entre nossa pobreza e a opulência dos primos ricos. Havia ali toda uma parafernália destinada ao lazer de crianças e adultos: oito bicicletas, espingardas cartucheiras para caçar, espingarda de ar comprimido (chumbinho) dos primos, varas de pescar de vários tamanhos, molinetes, anzóis, um barco a remo e, em frente à casa, entrando para dentro da lagoa, um "trampolim", construção extremamente comum naquela época. Todo bacana que possuía casa à beira da lagoa tinha o seu. Os ricaços que tinham casa de campo na cidade mas não à beira d'água também davam um jeito de construir um, meio espremido entre os já existentes, e claro, com a anuência dos moradores da orla. Creio que hoje não resta nenhum para contar história, mas na foto a seguir dá para perceber a "superpopulação trampolinística" que existia.



 
Não sei se meus primos sabiam nadar, mas entravam na lagoa, pescavam lambarizinhos e pequenas traíras da ponte do trampolim, saiam de barco com os adultos (pai e tio), andavam de bicicleta, davam tiros de chumbinho em aves aquáticas. Eu não sabia nadar, não sabia andar de bicicleta, não sabia pescar, não podia andar sozinho na ponte do trampolim e, menos ainda, sair dando tiro de chumbinho. Por isso, ficava lá, só olhando, só na vontade. Isso me faz pensar que se você conhece o Paraíso mas dele não pode usufruir plenamente, talvez fosse melhor nem conhecê-lo, concordam? Pois é. Olhaí um trampolim semelhante ao da casa de meus primos.

 




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