domingo, 27 de fevereiro de 2022

A NASA CONTRATOU 24 PADRES? SPOILER: NÃO

Achei tão interessante um texto que meu filho me enviou que resolvi publicá-lo no Blogson com todos os créditos e vênias possíveis. Seu autor é Carlos Cardoso e foi publicado em 30/12/2021 pelo site Meio Bit, com o seguinte título:
 
É verdade que a NASA contratou 24 padres? Spoiler: não
 
NASA contratou 24 padres para estudar extraterrestres, é a notícia que todo mundo está replicando de forma descerebrada. Como sempre a Internet mostra sua total incapacidade de praticar jornalismo básico, mas nem por isso a história é desinteressante. No fundo, o caso é um belo exemplo de vaidade, meu (e de Al Pacino) pecado favorito.
Tudo começou quando um teólogo e pastor da Universidade de Cambridge resolveu promover seu livro sobre cristianismo e astrobiologia. Ele publicou um post de blog e mandou releases, que chamaram a atenção do Times de Londres. Como jornaleiros não conseguem ler releases científicos, mesmo da área de Humanas, gerou-se um jogo de telefone-sem-fio que resultou em manchetes dizendo que a NASA havia contratado 24 padres para preparar a humanidade para uma descoberta sobre extraterrestres.
Primeiro, a NASA não tem nenhum padre em sua folha de pagamento, nem mesmo os russos têm, os sacerdotes ortodoxos que benzem os foguetes são contratados em regime de freelancer.
O que a NASA fez, sim, foi contratar o Centro de Investigação Teológica, uma ONG em Princeton para realizar pesquisas sobre as conseqüências sociológicas da busca de vida extraterrestre. A verba era de US$1,1 milhões, e cobriria dois anos de pesquisa do Instituto.
A NASA não iria escolher quem faria a pesquisa, nem se eram apenas teólogos ou membros do clero de várias denominações. O mais importante é que essa história é velha, bem velha. O press release anunciando a contratação do tal Centro pelo Programa de Astrobiologia da NASA foi publicado em... 2015.
Isso mesmo, a história que todo mundo está falando aconteceu 7 anos atrás. O que não quer dizer que o tema não seja extremamente interessante. A pergunta “Existe vida fora da Terra?” só tem duas respostas possíveis e ambas são aterrorizantes.
Mesmo sem ganhar dindim da NASA o mundo da Ficção Científica vem discutindo o tema por mais de 100 anos. É assunto que há séculos freqüenta mesas de bar, ainda mais acompanhado de uma excelente cerveja de monges beneditinos.
Os teólogos gostam de discutir como as religiões se adaptariam ao conceito de vida extraterrestre, e curiosamente a maioria delas não é contra o conceito, em alguns casos chega a ser explícita a preferência. No Espiritismo, por exemplo, Alan Kardec escreveu vários textos detalhando as sociedades e os habitantes de planetas como Vênus, Marte e Júpiter.
Claro, depois que a Ciência mostrou que esses planetas não são exatamente amigáveis, habitáveis ou habitados, rolou um retcon e os habitantes passaram a habitar “outro plano de existência”.
Uma grande discussão entre os teólogos que estudam Cristianismo é se o Pecado Original é um dogma restrito à Terra, ou se toda a história do martírio de Jesus é repetida localmente.
Em alguns contos de Ray Bradbury missionários são mandados para Marte, para catequisar os marcianos, apenas para rolar um plot twist onde os marcianos são criaturas de pura energia, sem qualquer tipo de pecado.
Há correntes extremamente arrogantes que defendem que o UNIVERSO vive na escuridão, e que é dever dos humanos levar a Palavra até os aliens. Isso é uma grande falta de imaginação, e repetição dos erros do passado, quando empurramos nossas religiões goela abaixo de povos conquistados e colonizados.
Provavelmente não será tão simples, quando o povo a ser catequizado tiver uma sociedade multiplanetária e naves estelares.
Estudos como o do Centro de Investigação Teológica não se limitam a imaginar como alienígenas reagirão às religiões da Terra, mas mesmo isso é extremamente interessante. Não sabemos se aliens têm os mesmos processos de pensamento que a gente, muito menos se suas emoções são as mesmas.
Mesmo na Terra, a forma com que nossa espécie se reproduz é fundamental para nossa Teologia. Em As Fontes do Paraíso Arthur Clarke descreve uma sonda interestelar inteligente que passa pelo Sistema Solar. Entre as várias conversas entre a Terra e a Sonda, questionam sobre religião, e segue-se o diálogo:
 
"06 junho 2069, 19:09. Mensagem 5897, seqüência 2.
Sideronauta para Terra:
Correta a dedução de que as 3 culturas classe 5 que mantinham atividades religiosas apresentavam reprodução biparental, e que os jovens permaneciam nos grupos familiares a maior parte de suas vidas. Como chegaram a essa conclusão?"
 
Insetos sociais e tartarugas, por exemplo, jamais desenvolveriam o conceito de divindades paternas ou maternas.
A parte que mais interessa à NASA é como a população reagiria diante da revelação de que há vida inteligente em outros planetas. Em seu ótimo O Fim da Infância, Clarke descreve o choque da chegada de alienígenas na Terra como algo tão grande que gerou uma onda psíquica que afetou o passado, transferindo em nossa memória ancestral a imagem dos aliens, que inspiraram o que conhecemos como demônios.
Em verdade, provavelmente teríamos bem menos conflitos, a maioria das pessoas comentaria por alguns dias sobre a descoberta de sinais de rádio transmitidos de outra estrela, mas a menos que viessem acompanhados da imagem de Hitler, cairiam na rotina e sumiriam junto ao Ciclo de Notícias de 24 Horas.
Somente quando começássemos a receber conhecimento dos alienígenas, isso afetaria nossa sociedade, a começar pela área acadêmica. Pela primeira vez teríamos toda nossa lógica simbólica, todo o arcabouço de nossa Filosofia analisados por alguém de fora, com uma base filosófica totalmente diferente da nossa. Clarke resumiu isso bem:
 
 “Sideronauta não tinha competidores entre os especialistas em lógica da Terra. Isso se devia, em parte, ao erro do Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago. Numa monumental prova de arrogância, havia clandestinamente transmitido, na íntegra, a Summa theologica, com resultados desastrosos...
 
"02 junho 2069; 19:34. Mensagem 1946, seqüência 2.
Sideronauta para Terra:
Analisei os argumentos de São Tomás de Aquino, como foi solicitado em sua mensagem 145, seqüência 3, de 02 junho 2069, 18:42. A maior parte do conteúdo parece ser um ruído aleatório desprovido de sentido, e, portanto, vazio de informação, mas a lista que se segue relaciona 192 falácias expressas na lógica simbólica de sua matemática de referência 43, de 29 maio 2069, 02:51.
Falácia 1..." (Seguia-se uma lista de computador de setenta e cinco páginas.)”
 
Caso aliens tenham uma teologia própria será nossa vez de sermos uma cultura tecnologicamente inferior, culturalmente influenciada e tendo nossas crenças modificadas e eventualmente substituídas pelas crenças da espécie dominante.
Socialmente pode haver efeitos ruins. Quando as crenças alienígenas começarem a conflitar com as teologias vigentes, o povo irá protestar, aliens serão chamados de hereges e infiéis, e haverá grupos promovendo abertamente que cessemos contato com eles.
Caso as religiões se adaptem, irão sobreviver. Elas estão acostumadas, toda religião parte do princípio que ELA é a detentora da verdade e todas as outras estão erradas. Uma religião alienígena a mais não fará diferença, exceto se a argumentação alienígena convencer os teólogos terrestres.
Muito provavelmente os eventuais avanços científicos advindos de um contato com uma espécie alienígena serão muito mais importantes do que seus efeitos na nossa teologia.
Bondade da NASA se preocupar com as consequências sociais da descoberta de vida inteligente fora da Terra, mas qualquer pesquisa nesse ramo é pura especulação, só serve para vender livro e ocupar autores desocupados numa modorrenta tarde de Terça-Feira, com o agravante de recebermos bem menos de US$1,1 milhões para isso.
 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

CUSTOS TÊM QUE SER COBRIDOS

Acredito não estar errado em pensar que a maioria absoluta da população do mundo é estúpida, ignorante, boçal ou sem cultura. E eu pertenço a esse grupo! Por isso, conheço minhas limitações e defeitos. O que me diferencia de meus pares é que não ligo nem me importo de reconhecer e aceitar toda a minha ignorância e falta de cultura.
 
Mas alguns parecem não perceber a pequenez de sua relevância ou a dimensão cósmica de seu despreparo e boçalidade. Por isso, resolvi fazer neste post um texto muito ridículo, com humor de quinta (série). Foi essa a minha intenção (para dizer a verdade, não ficou muito diferente de todos os já publicados). Apenas forcei um pouco a barra para deixá-lo à altura de um boçal que "cuida" da cultura do país. Olhaí:
 

Nossa língua é dinâmica (não estou me referindo ao órgão que às vezes sai da boca para algumas atividades pouco convencionais, OK?). Diria mesmo que não só dinâmica, mas sempre em evolução, tal a quantidade de novos vocábulos que não param de surgir. E uma das formas para isso acontecer é a alteração da grafia ou da sonoridade de palavras existentes.
 
Quando uma altoridade (ou seria alteridade? Ou autoridade? Ou nenhuma coisa nenhoutra?) contribui para essa evolução, a coisa fica ainda melhor. Nosso secretário de cultura foi brilhante ao dizer em uma entrevista:
- “Devolver o quê, garoto? Eu tô trabalhando. Eu fui numa comitiva oficial. Custos têm que ser cobridos”.

“Cobridos”... Perceberam a criatividade do novo vocábulo? Ele pode ter sido um ator inexpressivo, mas como secretário de cultura é genial, geni-all!
 
Tão genial que eu não resisti à tentação de empregar seu neologismo de imediato. E a melhor forma que encontrei foi escrever um texto ficcional. Mas deixo antes minha opinião: Tudo bem, secretário, tá de boa, não precisa devolver o dinheiro. Bem ou mal, foi gasto. Mas como tenho personalidade infantil, imatura e alguns traços de retardamento mental, fiquei tão empolgado com as possibilidades de experimentação surgidas com o neologismo, que resolvi adaptar algumas palavras e nomes próprios a essa sonoridade. Ficou mar-avi-lhos-o. Olhaí.
 
 
Adalbrido teve quatro filhos e a todos quis dar um nome com a mesma terminação que o seu, pois o considerava lindo. E assim foram batizados: Robrido, Gilbrido, Felisbrido e Dagobrido.

Robrido e Gilbrido eram gêmeos univitelinos e deixavam boquiabrido quem os via pela primeira vez, tal a semelhança. Um dia foram descobridos por um programa popularesco da TV abrida.
 
Em busca de audiência, os produtores do programa "mondo cane" os jogavam nas maiores roubadas. Como no dia em que o céu estava encobrido de nuvens cinzentas de chuva e foram obrigados a nadar em mar abrido. Mesmo diante da turbulência das ondas e do frio, encararam o desafio com determinação e de peito abrido.
 
Por não estar acostumados com a porta da fama repentinamente entreabrida para eles, começaram a gastar o que não podiam nem deviam, deixando muitos cheques a descobrido, sem saldo.
 
Foram demitidos quando foi tornado público que os dois mantinham um relacionamento abrido com a esposa do diretor do programa. A partir daí, envolveram-se com drogas e chegaram até a dormir na rua, a céu abrido, cobridos apenas por um cobridor fino.
 
Hoje, redescobridos depois de se converter, aparecem novamente na televisão, onde dão seu testemunho em programas de telepastores, quando dizem em uníssono: “eu sou um homem librido”. Mas se realmente estão livres das drogas só o tempo dirá, esse é um assunto ainda em abrido.

Que tal, secretário? Ficou bom o texto?
 

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

KAMA SUTRA

 


THE IG NOBEL PRIZE RIDES AGAIN!

Nunca ouviu falar do prêmio que dá o título deste post? Ele realmente existe e é uma espécie de paródia do verdadeiro Prêmio Nobel. As pesquisas e ações premiadas geralmente são ridículas, irrelevantes, inócuas ou equivocadas, mas sempre engraçadas.
 
A seguir, a transcrição de alguns trechos da reportagem da revista Galileu com as premiações mais divertidas de 2020. Acredite se quiser, nosso presidente foi um dos laureados.
 
O Ig Nobel Prize é uma premiação criada pela revista Annals of Improbable Research (em português, Anais de Pesquisa Improvável) que visa destacar as pesquisas ou experimentos mais inusitados em todo o mundo.
 
Acústica
O prêmio foi para uma equipe da Áustria, Suécia, Japão, Estados Unidos e Suíça que induziu o grito de um crocodilo fêmea chinês após entrar em uma câmara hermética cheia gás hélio.
 
Psicologia
Os vencedores foram os pesquisadores Miranda Giacomin e Nicholas Rule, que desenvolveram um método para identificar pessoas narcisistas por meio do exame de suas sobrancelhas.
 
Física
Pesquisadores da Austrália, Ucrânia, França, Itália, Alemanha, Reino Unido e África do Sul venceram ao mostrarem em um estudo publicado na Scientific Reports o que acontece com o corpo de uma minhoca ao vibrá-lo em alta frequência.
 
Gestão
Os vencedores desta categoria são um pouco incomuns: cinco assassinos chineses que delegaram a tarefa de matar uma pessoa um para o outro, cada um recebendo uma pequena porcentagem do pagamento, mas nenhum deles conseguiu praticar o crime. O caso ocorreu em 2015
 
Medicina
Os cientistas Nienke Vulink, Damiaan Denys e Arnoud van Loon, da Bélgica e da Holanda, diagnosticaram uma nova condição psiquiátrica: a misofonia - angústia de ouvir outra pessoa mastigando.
 
Educação Médica
Ao todo, nove líderes políticos ganharam este prêmio por "usar a pandemia de Covid-19 para ensinar ao mundo que os políticos podem ter um efeito mais imediato sobre a vida e a morte do que os cientistas e médicos", justifica o comunicado do prêmio. As personalidades citadas foram Jair Bolsonaro (Brasil), Boris Johnson (Reino Unido), Donald Trump (Estados Unidos), Vladimir Putin (Rússia), Narendra Modi (Índia), Andrés Manuel López Obrador (México), Alexander Lukashenko (Bielorrússia), Recep Tayyip Erdogan (Turquia ) e Gurbanguly Berdimuhamedow (Turcomenistão).
"São todos indivíduos que perceberam que seu julgamento é melhor do que o julgamento de pessoas que estudaram isso durante toda a vida e foram mais insistentes a respeito", disse, em nota, Marc Abrahams, editor da Annals of Improbable Research.
 
Materiais
Pesquisadores dos Estados Unidos e Reino Unido criaram uma faca feita de fezes humanas congeladas e mostraram que elas, na verdade, não funcionam. A ideia foi do antropólogo Metin Eren, que desde criança era fascinado por uma história de um homem inuíte, nação esquimó que habita o Canadá, o Alasca e a Groenlândia, que fez uma faca com seu próprio cocô. "As facas falharam terrivelmente", disse ele, em nota. "O objetivo era mostrar que as evidências e a verificação dos fatos são vitais."
 
 
 
CANDIDATO A NOVA PREMIAÇÃO:
Aparentemente, nosso querido Bozo tem vocação para receber prêmios dessa magnitude, pois esteve envolvido em três eventos que,  associados, dão direito a nova premiação ( e até a ganhar música no Fantástico). Bora lá,
 
Primeiro evento: Mesmo desaconselhado por seus assessores, recentemente nosso presidente visitou a Rússia, encontrando-se com Putin em 16 de fevereiro. Essa visita gerou críticas, memes e piadas, uma delas feita pelo ex-ministro Ricardo Salles, ao insinuar que a visita de Bolsonaro teria impedido a 3ª guerra mundial (“Putin sinaliza recuo na Ucrânia, presidente Bolsonaro evita a 3ª guerra mundial”). Era uma piada – e ele mesmo reconheceu - cujo objetivo real era manter o nome do presidente em evidência (isso ele não reconheceu).
Fico com vergonha de admitir não ter percebido que se tratava de um meme eleitoreiro. O problema é que o ex-ministro só admitiu ser brincadeira depois de meio mundo ter caído de pau nessa idiotice e – pasmem! – 22% das pessoas entrevistadas sobre essa notícia terem realmente acreditado no poder pacificador do presidente.
 
Segundo evento: E agora, a coisa se complica um pouco mais: ainda no dia 16, nosso presidente disse o seguinte: “Mantivemos a nossa agenda, por coincidência ou não parte das tropas deixaram a fronteira”. Será que ele também acreditou na lorota do Ricardo Salles?
 
Terceiro evento: O que sei é que oito dias depois da viagem de Bolsonaro â Rússia, a Ucrânia foi invadida.
 
Conclusão: em minha opinião o mito preencheu todos os requisitos para receber o Prêmio Ig Nobel da Paz de 2022.
 
 
Se quiser rir mais um pouco com premiações passadas, acesse este link: 

https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2015/01/premio-ignobel.html

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

HISTÓRIA DE UM MACHADO

Já publiquei aqui um post com o título “Histórias de canivete”. Hoje, depois de ter lido um artigo sobre os “gênios pré-históricos” que desenvolveram e criaram as primeiras armas e artefatos usados para cortar, furar, caçar, matar e outras finalidades semelhantes, lembrei-me de um micro-caso, um nano-caso de infância envolvendo uma linda pedra polida. E esse é o caso de hoje. O título (já lido) não poderia deixar de ser “História de um machado”. Bora lá.
 
Quando eu era criança, surgiu um dia na casa de minha avó uma pedra polida de cor marrom escuro, com uma quase inequívoca aparência de machado. Tinha um formato ovalado, com uma superfície arredondada de um lado e uma parte mais plana no lado oposto. Além disso, uma das pontas tinha um formato de cunha, ou melhor, possuía uma borda mais fina, mas nada que indicasse ser ela capaz de cortar alguma coisa. Além disso, para uma criança, não havia sinais de ter sido utilizada para arrebentar o crânio de algum inimigo.
 
Não sei quem a trouxe e vivia displicentemente jogada para lá e para cá, sem que ninguém se importasse com ela nem mesmo para jogá-la no lixo. Só sei que às vezes eu imaginava colocar nela um cabo, para transformá-la em machado de índio (americano, naturalmente), pois gostava muito dos filmes de faroeste em que aconteciam aquelas batalhas entre soldados brancos e índios com belos cocares, calça de couro e montados em cavalos sem arreios. E sempre tinha um machado na mão de algum índio - que logo tomava um tiro e despencava do cavalo. Era emoção pura para uma criança! Mas nunca consegui prender a pedra pesada em um pedaço de cabo de vassoura. Neste ponto preciso fazer um pequeno parêntese:
 
Quando meus filhos eram pequenos e estavam comigo dentro do carro, às vezes eu mexia com o volante e dizia brincando que iria atropelar uma lata de lixo, cachorro ou até mesmo algum idoso que estivesse pensando em atravessar a rua. Mais ou menos como eu me sentira ao ver as cenas emocionantes de batalha e com as palavras de sonoridade mais complexa ainda sendo aprendidas, um dos filhos se entusiasmava com a sugestão e dizia:
- “Tupela, pai!” O que significa “Atropela, pai!”. Hoje, é um pacifista em tempo integral e totalmente do bem (mesmo que o pai sem noção continue idiota como sempre). Fechado o parêntese, continuemos.
 
O tempo passou, eu me casei, minha mãe guardou os poucos brinquedos identificados como brinquedos mesmo, a casa foi vendida, a família mudou-se para Lagoa Santa e muitas coisas sem valor econômico guardadas ou esquecidas durante décadas na casa de minha avó talvez tenham sido jogadas fora quando a mudança foi feita.
 
O que poderá ter acontecido com uma pedra polida, brilhante e sem sinais de uso, que poderia ser utilizada como peso de papel, calço de porta, (improvável) enfeite de mesa ou machado pré-histórico? Só Deus sabe! Perguntei à minha irmã (onze anos mais nova que eu) se dava notícia disso e ela respondeu não saber nem do que eu estava falando. Talvez meu irmão tenha ficado com ela, talvez seja o responsável por seu descarte.
 
Lembrei-me disso ao ver a foto de um machado de pedra. E a pedra da foto é “exatamente” igual à pedra da casa de minha avó. Não faço ideia de sua origem, talvez seja apenas uma pedra que alguém achou bonita, talvez tenha sido utilizada por algum de nossos indígenas para fazer um machado ritual. Mas prefiro pensar em um artefato pré-histórico - que provocou a maior dor de corno por não ter me apoderado dela quando ainda podia. Olha um machado "igual" aí.



terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A IMPROVÁVEL HISTÓRIA DE DONA BELARMINDA E SEU AGENOR - PARTE 2

Depois de aposentado, Agenor comprou uma quota de sócio-proprietário do melhor clube da cidade, onde, aos sábados, acontecia um "jantar dançante para a melhor idade". E era para lá que iria com Belarminda.
 
Bela arrumou-se toda e sentou-se no sofá perto do elefante de louça, à espera do amigo. Agenor era sempre pontual, mas naquele dia ela acreditou que estava ligeiramente atrasado. Enquanto esperava, alternava o pensamento entre o amigo e o elefante, pois sua tromba parecia estar perdendo o brilho próprio da louça.
 
Agenor chegou, desculpou-se pelo pneu furado e foram se divertir. Um bom vinho foi pedido, a conversa ficou mais leve, pediram alguns petiscos antes de escolher a refeição e mais uma garrafa de vinho chegou.
- Geno, assim eu vou ficar bêbada!
- Bobagem! Quer dançar comigo agora?
 
A música que estava tocando era um bolero, o ritmo ideal da sedução. Agenor enlaçou a cintura um tanto avantajada de Bela e começou a exibir a habilidade adquirida.
- Geno! Nunca imaginei que você soubesse dançar! O Tales era horrível, sempre dava um jeito de se atrapalhar. E você dança muito bem!
- A Vida me ensinou. Mas deixe o Tales para lá, vamos apenas curtir a noite.
- Humm, seu perfume é delicioso. Não sabia que meu irmãozinho era tão cheiroso!
 
Agenor encostou suavemente seu rosto no de Bela e pediu sussurrando:
- Por favor, não me chame mais de irmãozinho.
- Mas você sempre foi!
- Não sou mais. Chame-me de amigo, de companheiro, de sócio de pizza, mas não de irmão.
- E por que não?
- Um dia eu te conto.
 
Belarminda achou aquele pedido muito esquisito, mas como a dança estava boa e o vinho fazia efeito, deixou-se levar pelo amigo, mantendo os olhos fechados e o rosto colado ao de Agenor. Como ele estava cheiroso! Dançaram mais um pouco, voltaram para a mesa, pediram um filé surprise, comeram, conversaram mais um pouco e foram embora. Ao deixá-la na porta de casa, Agenor deu-lhe um beijo no rosto milésimos de segundo mais demorado que o normal, mas suficiente para Bela perceber e ficar pensativa. Aquela tinha sido uma noite muito estranha...
 
Durante a semana Belarminda repassou algumas vezes a noite de sábado. Nunca imaginou que Geno tivesse uma pegada tão boa para dançar. E seu corpo estava elegante, quase sem barriga. Também examinou mais atentamente sua própria imagem no espelho. Talvez uma aplicação de botox fosse uma boa ideia. O problema eram os seios, muito grandes, murchos e caídos. Também, quem mandou ter dez filhos? Culpa do idiota do Tales! Na próxima vez em que se encontrassem, perguntaria pro Geno se um implante de silicone ficaria bom. E aquele beijo no rosto, bem perto da boca? Estranho estar pensando essas coisas!
 
Agenor também repassou o que tinha acontecido naquela noite. Sim, correra tudo muito bem, ele não tinha pressa. Afinal, passara toda uma vida sonhando com isso. Mas estava na hora de tentar avançar mais um pouco, tentar um xeque-mate.
 
No sábado seguinte, novo convite para dançar. Mesmo ritual da semana anterior, um vinho para desinibir e a dança de rosto colado.
- Bela, tenho uma confissão para te fazer.
- Não me venha dizer que é gay!
- Não, longe disso! O que eu sou é louco por você.
 
Bela ficou atordoada com o que acabara de ouvir.
- Quê? Brincadeira boba!!
- Sempre fui!
- Ai, meu Deus! Depois dessa eu acho que preciso de mais um vinho! Por que está me falando isso agora?
- Na juventude você só tinha olhos para outros caras, mais velhos, mais sarados, mais espertos. Depois, casou-se com o Tales, teve dez filhos. Como eu poderia dizer que você sempre foi minha paixão, minha fantasia sexual mais duradoura?
- Estou passada! Aliás, estou chocada!
- Por isso eu te pedi para parar de me chamar de irmão.
- Acho que vinho só não basta para absorver esta notícia, preciso beber um uísque. Ou dois. E não quero mais dançar.
- OK.
 
Sentaram-se à mesa novamente e um silêncio total instalou-se entre eles. Belarminda estava com o olhar meio perdido, olhando para todos os lados, menos para Agenor. Ele, ao contrário, não tirava o olhar dela. Colocou suavemente sua mão sobre a dela e disse:
- Deixe-me explicar. Eu realmente sempre fui louco por você, mas só tinha direito de sentir um amor platônico, pois você, além de ter uma vida afetiva muito intensa, ainda me transformou em seu confidente. Cada situação mais picante que despreocupadamente me contava fazia com que eu me incendiasse por dentro. Perdi a conta de quantas vezes tive sonhos eróticos com você, desde simples beijinhos na boca até a mais completa intimidade.
- Mas essa menina não existe mais; o tempo passou e hoje eu sou outra pessoa, velha, gorda, caída e sem atrativos...
- Engano seu, eu continuo a te achar linda e desejável, muito desejável.
- Eu te tratando de irmãozinho e você na maior saliência comigo enquanto dormia. Só falta dizer que também sonhava acordado!
- Claro! Quase todo dia, para ser sincero...
- Cruzes!
- Lembre-se de que você era a menina mais linda e gostosa da região!
 
A mão de Agenor acariciou delicadamente o rosto de Bela sem que ela se esquivasse ao toque do amigo, que continuou.
- Por isso eu acabei te chamando de senhora, de Dona Belarminda, o que foi um exagero bobo. Talvez, depois do seu casamento, eu devesse apenas abandonar seu apelido insinuante e passasse a te chamar pelo nome de batismo.
- Eu odeio meu nome!
- Pois é, mas só depois que começou a ter filhos um atrás do outro é que eu acrescentei o "senhora" e o "dona". Acho que foi uma forma de protesto pela transformação de uma moça linda em fábrica de filhos.
- O Tales morria de rir dessa bobagem e te achava um idiota.
- Eu pensava o mesmo dele, mas eu queria disfarçar ao máximo minha forma de olhar e até de falar com você. Aliás, você morreria de rir se soubesse de todas as fantasias que fui criando ao longo dos anos. Uma delas, por exemplo, seria te convidar para passar uns dias em Caldas Novas com tudo por minha conta. Com a desculpa de baratear a viagem, reservaria um quarto de casal, mas deixando bem claro que eu dormiria no sofá. É óbvio que eu acabaria não dormindo ali. Diria estar carente afetivamente, me sentindo muito só e que gostaria que me abraçasse de conchinha.
- Você é doente!
- Era só mais uma fantasia, pois você ainda estava casada!
- Acho que já está tarde. Podemos ir embora?
- Claro!
 
Era muita informação a ser processada. Não estava zangada, não estava magoada ou decepcionada, apenas surpresa, apenas perplexa por tudo que tinha ouvido. O trajeto do clube até a casa de Belarminda foi feito em silêncio, só quebrado por ela depois de Agenor estacionar e descer do carro para acompanhá-la até a porta.
- Estou pensando em ir à Feira de Artesanato amanhã. Quer ir comigo?
- Claro! E como eu faço para marcar com você? Te ligo antes ou te cutuco?
 
A brincadeira inesperada e maliciosa desarmou Belarminda. Com o maior sorriso no rosto, puxou Agenor pela mão, dizendo:
- Vem, menino vadio, vem realizar sua fantasia!
 
Na segunda-feira, o lixo normal da casa ganhou a companhia dos cacos de um elefante de louça. Mas, tudo bem. Afinal, ele nunca combinara mesmo com a decoração da sala...

domingo, 20 de fevereiro de 2022

A IMPROVÁVEL HISTÓRIA DE DONA BELARMINDA E SEU AGENOR - PARTE 1

Belarminda e Agenor eram vizinhos e conviviam desde a infância, há tanto tempo que diziam ter-se conhecido antes de Cabral descobrir o Brasil. Pela intimidade chamavam-se de Bela e Geno, que ele tentava sem sucesso corrigir para Gênio.
 
Brincaram as brincadeiras normais da infância e que se brincava quando ainda não havia nem mesmo televisão em suas casas. Como estavam sempre juntos, as mexeriqueiras da vizinhança os provocavam dizendo que eram namoradinhos, só para ver a reação irada de Belarminda:
- Nós não somos namoradinhos, o Geno é meu irmão! E ele concordava, sorrindo um pouco constrangido.
 
A puberdade aconteceu para os dois de forma não sincronizada, como é normal acontecer. Para surpresa de Agenor, Belarminda começou a ficar mais alta que ele, o corpo começou a arredondar nos quadris, relevos e vales nunca observados antes começaram a surgir e – o que mais o intrigou – ela não se interessava mais em jogar bola na rua nem brincar de pegador. A amiga de infância era agora uma quase desconhecida, um enigma, um mistério, enquanto ele continuava a ser o mesmo menino bobo que sempre fora.
 
Mas esse foi um tempo "que afinal passou como tudo tem de passar", pois os hormônios logo começaram também a agir em Agenor. O corpo deu um estirão, alguns pelos começaram a surgir em seu rosto (disputando espaço com a tempestade de acne que o atingiu), o pomo de Adão ficou visível no pescoço e a voz começou a alternar tons graves e agudos, provocando risos em Bela.
 
Para encurtar a conversa, entraram os dois na adolescência, mas cada um a seu modo. Belarminda tornou-se uma moça que fazia jus ao apelido de infância, alegre, desinibida, de riso fácil e que deixava todos os marmanjos babando por ela. Agenor tornou-se um jovem introspectivo, apagado, que não atraia a atenção de nenhuma garota. Ainda conversava com Bela de vez em quando, mas não tinha como acompanhar sua vida social e afetiva. Mesmo assim, às vezes ouvia da amiga as confissões mais desconcertantes, como da vez em que ela confessou ter desencaminhado e desencorajado um seminarista do desejo de ser padre.
 
Bela começou a namorar e trocava de namorado com muita rapidez - até conhecer o Tales, por quem se apaixonou. Agenor, que acompanhava de longe o frenesi amoroso da amiga, ainda tentou sugerir que fizesse uma mudança de rota:
 
- Bela, você precisa escolher melhor seus namorados, você parece só gostar de gente errada, de quem só está interessado no seu corpo!
- Ah, Geno, não acho graça em rapaz muito certinho, eu sou do signo de escorpião, talvez seja essa a minha sina. Lembra da história do escorpião e da rã atravessando o rio?
 
Mas era tarde para conselhos. Naquela época, quem engravidava casava. E assim, Belarminda entrou na idade adulta. Parou de estudar, casou-se com Tales e encadeou dez gravidezes no espaço de quinze anos.
 
Agenor, ao contrário, permaneceu sozinho, transformando-se em um solteirão solitário e quase sem amigos. Conseguiu um bem remunerado emprego no governo federal e até mudou-se para a capital. Às vezes voltava à cidade onde nasceu e tentava rever sua amiga, agora já meio velhusca, com aparência bem diferente da beleza que fez virar a cabeça de muitos jovens.
 
Para surpresa de Bela, ele passou a chamá-la de Dona Belarminda.
- Geno, você está ficando louco? Eu sou sua amiga Bela, está lembrado?
- Sim, mas toda mulher casada precisa ser tratada com respeito.
- Você está cada dia mais sistemático e antiquado, só falta usar fraque e cartola! Mas como eu gosto de você, o "senhor" pode me chamar do jeito que quiser. E contra atacou, passando a chamá-lo entre risos de "Seu Agenor".
 
E o tempo continuou a passar, cada vez mais rápido, "como tudo tem de passar". Agenor aposentou-se com salário integral e resolveu morar de novo no bairro onde tinha nascido. E o motivo foi ter ficado sabendo da recente viuvez de Belarminda, finalmente livre daquele escroto do Tales.
- Por que você chama o Tales de escroto?
- Porque ele é. Um sujeito que fez a senhora embarrigar dez vezes é um escroto de carteirinha.
- Seu Agenor, Seu Agenor! Acho que o "senhor" começou a caducar com vinte anos!
 
Resolvido o problema da moradia voltou a chamar a amiga pelo apelido antigo.
- Ué, Seu Agenor, o senhor está muito moderno!
- Ah, Bela, para com isso! É que agora você é novamente uma mulher livre para se relacionar com outros homens.
- Geno! Você está se insinuando para mim?
- Claro que não!
 
Mas, mesmo sem admitir nem para si mesmo, estava. O problema era o período de luto a ser respeitado. E foi durante esse tempo que ele começou a mudar. A primeira providência foi se matricular em uma academia, "para perder esta barriga". De forma planejada e programada, começou também a ter aulas de dança de salão - uma das melhores formas de iniciar um processo de conquista e sedução, no seu entendimento.
 
Belarminda, por sua vez, começou a sentir saudade do toque de pele, do calor do corpo balofo do falecido. Ainda sem saber o que fazer, começou a brincar com um elefante de louça que ficava sobre a mesinha da sala, presente de Tales em algum aniversário de casamento, pois enxergava uma sensualidade oculta naquelas curvas esmaltadas.

Para Agenor, um período de luto adequado deveria durar um ano. Por isso, nesse meio tempo, um dia avisou Belarminda de que iria levar uma pizza a palito para petiscar enquanto conversassem sobre os velhos tempos, a Vida, o escroto do Tales, qualquer coisa que desse vontade. Belarminda achou ótima a ideia, pois morava sozinha agora, já que a filharada toda tinha se casado e se espalhado por vários lugares, cidades e até no exterior, pois uma das gêmeas morava em Portugal.
 
E Agenor continuou pacientemente a executar sua programação. Um dia, a pretexto de estar cansado de encomendar e receber pizza fria, convidou Belarminda para jantar fora.
- Você precisa sair mais, se divertir.
- Tem razão, às vezes eu me sinto muito só. Ainda bem que tenho sua companhia.
 
Ir a uma pizzaria aos sábados à noite tornou-se rotina para os dois. Até o dia em que Belarminda comentou:
- Anteontem completou um ano do falecimento do Tales.
- Eu sei.
- Sabe? Acho que vou te designar para o cargo de minha agenda oficial!
- Eu sou um homem de muitas qualidades insuspeitadas.
- Você está me saindo melhor que a encomenda! E ficaram rindo da bobagem.
 
Na semana seguinte, Agenor avançou mais uma casa em seu jogo de sedução. As muitas aulas de dança e a malhação na academia já tinham apresentado significativo progresso.
- Bela, é o Geno. Estava pensando em fazer hoje um programa totalmente diferente.
- Espero que não seja ver televisão!
- Não, estou te convidando para um jantar dançante.
- Uau! Você sabe dançar? Eu nunca imaginaria isso! Você sempre foi tão tímido e introspectivo...
- Eu sou cheio de mistérios.
- E aonde iremos?

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

PASSEI MINHA VIDA A TREBELHAR

  
Lá pelos idos da década de 1980 meu finado colega Pintão às vezes dizia que “a gente ganha pouco mas se diverte muito”. Entre outras diversões, às vezes ficávamos lendo o dicionário do Aurélio e comentando ou ironizando as palavras que desconhecíamos (a quase totalidade, para ser mais exato). Por exemplo, descobri que “trebelhar” significa “brincar, folgar”, coisa em que éramos quase especialistas, fazendo-me repensar a frase de meu amigo. Hoje, eu diria que “a gente ganhava muito e trabalhava pouco” ou “trebelhava muito e trabalhava pouco”.
 
Estou dizendo isso por conta de uma divertida crônica que um de meus filhos me enviou pelo whatsapp. É de autoria de Gregório Duvivier (por quem não tenho muita simpatia, para dizer a verdade) e creio ter sido publicada na Folha em outubro de 2021. E o tema (já antevisto no título da crônica publicada) são as palavras absolutamente desconhecidas que existem nesta língua periférica que é o português.
 
Antes de transcrever o texto recebido, lembrei-me de palavras e expressões regionais que me foram ensinadas por um ex-colega português (creio já ter contado sua história aqui no blog). Segundo ele, em Angola, país onde nasceu, não se andava de ônibus, andava-se de machimbombo. E se a fome apertasse, a solução seria sentar-se à mesa de um bar ou café ao ar livre (tal como em Lisboa) e pedir um café acompanhado de um “prego no prato” - mesmo que eu ache estranho tomar um cafezinho tendo um pão com bife para acompanhar. Mas deixemos de trebelhos e vamos logo ao que interessa, o texto recebido. Olhaí.

 
Ficaste na ronha, javardo: chega de aldrabice que isto é batota e desenrascanço.
 
Osportugueses levaram pro Brasil pelo menos 100 mil palavras. Tenho pena que tenham esquecido em casa algumas das minhas preferidas. Talvez não tenha sido esquecimento mas ciúmes: gostavam tanto delas que não queriam vê-las em nossas bocas. Há todo um rol de palavras que nunca atravessaram o Atlântico.

Gosto em especial da palavra ronha - e de praticá-la. A palavra parece outra coisa, e de fato já foi: uma espécie de sarna, e também uma doença de plantas. Ninguém mais usa nesse sentido. A expressão "ficar na ronha" se refere à pratica de abrir os olhos mas permanecer na cama. Não imaginam minha excitação ao descobrir que existe uma palavra pro meu esporte preferido.
 
A arte da ronha consiste em acordar sem no entanto se levantar. Trata-se do primeiro trambique do dia: a procrastinada inaugural de todas as manhãs. "Dormi pouco", dizem, "mas fiquei duas horas na ronha" - e pode parecer que ronha equivale à função soneca. Não, durante a soneca voltamos a dormir. E na ronha permanecemos naquele meio termo que Proust demorou dez páginas pra descrever, mas aos portugueses bastaram cinco letras.

Um só português em diferentes versões
Tenho muita pena de não usarmos a palavra javardo. Trata-se de um sinônimo pra javali, mas que nunca será usado pra designar o animal propriamente dito. Chamam de javardo alguém que se comporta como um javali, ou melhor, que se comporta como imaginamos que um javali se comportaria: de forma grosseira, estúpida, abjeta. Gosto porque a palavra soa precisamente o que ela significa. Assim que desembarquei em Portugal, ouvi de um taxista a frase: "Vosso presidente é um javardão". Nunca tinha ouvido a palavra. Ainda assim não tinha como discordar.

Da mesma forma, não temos um xingamento bom como "aldrabão", termo que designa com especial precisão um farsante muito específico, algo entre o trapaceiro e o impostor, que comete aldrabices, pequenas fraudes - não confundir com batotas, outra palavra que não viajou, que se refere às trapaças quando cometidas dentro de um jogo sem grande importância.
 
De todas as palavras esquecidas, tenho uma predileta, aquela que designa a solução que resolve um problema de maneira temporária, mas não em definitivo: desenrascanço. Trata-se de uma gambiarra, mas não necessariamente mecânica - pode ser qualquer coisa que nos safe, como um papelão que faz às vezes de guarda-chuva.

Nunca ouvi essa palavra em nossas bandas, e ao mesmo tempo nunca uma palavra definiu tão bem a atividade diária do brasileiro, esse desenrascado. Queria essa palavra em nossa bandeira: ordem, progresso e desenrascanço.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

SALVATOR MUNDI

 
O ex-ministro Ricardo Salles é um sujeito de muitos talentos (talentos, no caso, como sinônimo de atributos). Já foi o ministro do passa boi, passa boiada e deixou quebrar o pau na Amazônia (quebrar, neste caso, é sinônimo de cortar, arrasar, desmatar).
 
Agora na função de ex-ministro, demonstrou ser um criativo escritor de ficção (ficção, neste caso é sinônimo de realidade alternativa, fake news). Olha que primor (no futuro seu devido valor será reconhecido):
  

 
Essa imagem me faz pensar que ele deveria ser conhecido pelo apelido de Sale Off (liquidação), pois a idiotice que escreveu merece um desconto de 100%. E o mais engraçado é que a CNN o desmentiu no mesmo dia, publicando esta manchete:
 
“CNN não noticiou que presidente Bolsonaro evitou guerra
Montagem com o logo da CNN foi publicada pelo ex-ministro Ricardo Salles”
 
Falando sério, é patética e cheia de má fé essa tentativa de transformar seu ex-chefe em uma espécie de "Salvator Mundi" a ser vendido para os boçais que o seguem e idolatram, mesmo que para isso precise mentir, pouco se importando com a falsidade embutida nesse desejo. 

Vou repetir uma frase jotabélica antiga, como comentário final: 
O que se pode dizer daqueles para quem "os fins justificam os meios"? Que não têm princípios.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

AS FRASES DE OTTO LARA RESENDE

Dia desses, ao citar a frase “Minas está onde sempre esteve e daí não arredará nem um passo”, fui surpreendido por meu amigo Marreta, que disse ter sido ela proferida por Magalhães Pinto, ex-governador de Minas Gerais. Fiquei com aquilo na cabeça, pois apesar de estar ainda na adolescência quando os antigos partidos políticos foram extintos em um dos governos militares pós 1964, tinha sensação de que o Magalhães Pinto era muito careta para dizer uma frase tão ensaboada, tão escorregadia assim.
 
Por isso, encarei a internet para tentar esclarecer minha dúvida. Além de não descobrir a frase tal como a conhecia, ainda descobri que o provável autor de uma frase semelhante foi Otto Lara Resende, outro mineiro, um dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse” (como ele mesmo definiu) vindos de Minas Gerais. Os outros eram Helio Pellegrino, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.
 
Lembro-me de que meu amigo Pintão não gostava muito deles, por achar que havia muito corporativismo na amizade dos quatro escritores, sempre um elogiando a obra do outro. Penso que havia nessa depreciação uma ponta de despeito ou inveja, pois creio que meu amigo conhecia o quarteto. Pouco importa.
 
Minha pesquisa indicou também que o provável autor da tal frase era um especialista na arte da conversa e excelente frasista. Tanto que Nelson Rodrigues teria dito que "A grande obra de Otto Lara Resende é a conversa; deviam pôr um taquígrafo andando atrás dele e vender suas anotações em uma loja".

E como o Blogson é uma espécie de gigolô de autores de citações, aforismos e comentários inteligentes, resolvi procurar algumas dessas frases para enriquecer o blog. Olha a “mineiragem” aí: 


Minas está onde sempre esteve, com seu passado, seu presente e seu futuro.

Minas está onde sempre esteve. (Ao definir a posição do governador Magalhães Pinto, em 1961, na crise da renúncia de Jânio).

A grande contribuição de Minas Gerais para a cultura universal é a tocaia. A tocaia é uma homenagem à vítima. Morre sem aviso prévio, delicadamente, se possível desconhecendo o autor da cilada.

A tocaia é a grande contribuição de Minas à cultura universal.

Devo ter sido o único mineiro que deixou de ser banqueiro.

Tenho para mim que sei, como todos os brasileiros, os três primeiros minutos de qualquer assunto.

Sou versátil, o que é a melhor maneira de nada saber. Sou jornalista, especialista em assuntos gerais. Sei alguns minutos de muitos assuntos. E não sei nada.

O sujeito humilde cuja sogra tem reumatismo deformante vê logo que eu sou o confidente ideal, me envolve, me mobiliza.

Há um lado pobre-diabo em mim. Os pobres-diabos logo farejam e se irmanizam, me perseguem, não me largam.

Positivamente, não posso ser apresentado a Satanás: como André Gide, sofro a tentação de entender as razões do adversário.

O mineiro só é solidário no câncer

A psicanálise é a maneira mais rápida e objetiva de ensinar as pessoas a odiar o pai, a mãe e os amigos.

O homem é um animal gratuito.

O analista é uma comadre bem paga.

De que nos serve a posteridade, se não seremos contemporâneos dela?

Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela.

Política é emboscada. Esperar o cavalo passar arreado na ponta, como dizia o Getúlio, grande político.

Sou autor de muitos originais e nenhuma originalidade.

Sou feito à imagem e semelhança da mulher de trottoir: eu paro com um assobio!

O homem é dramático porque morre.

A morte é o clube mais aberto do mundo.

Para mim é absolutamente fundamental que o espetáculo não termine aqui embaixo, na Terra.

Há em mim um velho que não sou eu.

A Europa é uma burrice aparelhada de museus.

Abraço e punhalada a gente só dá em quem está perto.

Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar.

Sou um falante que ama o silêncio.

Todo mundo que cruzou comigo, sem precisar parar, está incorporado ao meu destino.

Deus é humorista.

Ultimamente, passaram-se muitos anos.

Sou um sobrevivente sob os escombros de valores mortos.

Texto de jornal é estação de trem depois que o trem passou. Deixou de ter interesse.

A morte é noturna. À noite, todos os doentes agonizam.

Leio muito à noite. Só não sou inteiramente uma besta porque sofro de insônia.

O mineiro seria um cara que não dá passo em falso, é cauteloso. Em Minas Gerais não se diz cautela, se diz pré-cautela...

A morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável.

Escrever é de amargar.

O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de tão visto ninguém vê.

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Da discussão, nascem os perdigotos.

O único erro humano que merece pena capital é o de revisão.

Sou exatamente o menino que aos nove anos foi declamar um verso de Antero de Quental e se perdeu.

Para mim, domingo sem missa não é domingo.

Não quero tripudiar sobre ninguém. Junto a isto um insanável sentimento de simpatia, que me domina, por todos os decaídos.

Quem me garante que Jesus Cristo não estaria hoje na estatística da mortalidade infantil?

Escrevemos, escrevemos, escrevemos. Clamamos no deserto. O clube do poder tem as portas lacradas e calafetadas.

Política é a arte de enfiar a mão na merda. Os delicados (vide Milton Campos) pedem desculpas, têm dor de cabeça e se retiram.

Intelectual na política é quase sempre errado. É sempre errado. A práxis não deixa espaço para pensar; pensar é muito sutil, enrascado, complexo, multiplica as alternativas.

Aproximei-me do espetáculo político pelo que há nele de fascínio humano. A política talvez seja uma forma de tentar driblar a morte.

A ação política é cruel, baseia-se numa competição animal, é preciso derrotar, esmagar, matar, aniquilar o inimigo.

Não tenho direito de enjoar a bordo do Brasil.

Devemos a Graham Bell o fato de estarmos em qualquer lugar do mundo e alguém poder nos chatear pelo telefone.

É a morte que nos leva a desejar a imortalidade impossível. (Ao aceitar concorrer a uma vaga na ABL).

Patrão de esquerda só é bom até o dia do pagamento.

Não sou alegre. Sou triste e sofro muito. Dentro de mim há um porão cheio de ratos, baratas, aranhas, morcegos, escuro, melancolia, solidão.

O humour é a grande expressão, o melhor canal para dar notícia da vida, da nossa tragédia interior e exterior.

Sou leitor atento da página fúnebre. Tem mais gente conhecida nossa do que a coluna social.

Depois dos cinquenta, a vida precisa de um anestésico.

Hoje eu reúno duas condições que em princípio se excluem: sou careca e grisalho. (Ao fazer 60 anos).

Eu escrevo todo dia, por compulsão. Mas agora, aos 70 anos, uma das perguntas que mais me intrigam é o que eu vou ser quando crescer. (Essa pergunta ele não conseguiu responder, pois morreu aos 70 anos em consequência de uma embolia pulmunar)


MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4