sexta-feira, 1 de agosto de 2014

HISTÓRIAS DO DIGÃO - PARTE V

A PAIXÃO POR LIVROS

O Digão tinha uma paixão desmedida por livros. Para ele, um livro era muito mais que um objeto de leitura. Era sempre o presente escolhido para dar a alguém, era sempre o presente desejado no aniversário ou Natal. Os livros novos eram manuseados, cheirados, examinada a textura e a gramatura das folhas. Eram, enfim, tratados quase como uma joia. 

Quando perguntado sobre a quantidade, sempre dizia que tinha uns cinco mil volumes. Esse número permaneceu estável ao longo do tempo, não só por não tê-los mais contado, como, segundo ele, pela frequente subtração de romances cometida pelas filhas do primeiro casamento, fato compensado pela aquisição permanente de novos livros. Além dos livros, encadernava também as revistas que comprava – National Geographic, Scientific American, Veja (desde o primeiro número, se não me engano). O mesmo fazia com jornais especiais que já haviam saído de circulação, caso do jornal Opinião e até de um jornal do século XIX.

Aos sábados ia à Livraria Van Damme, onde era amigo do proprietário. Durante a semana, diariamente ou quase isso, ia à Livraria Ouvidor que ficava a um quarteirão de distância da empresa onde trabalhávamos. Ali folheava livros e revistas importadas, encomendava e comprava compulsivamente, a ponto de ter conseguido com o gerente a comodidade de pagar após o recebimento do salário. Comprava “na caderneta”, como ainda se faz em alguns armazéns de bairro. Como comprava muito e sobre qualquer assunto, útil ou inútil, às vezes comprava o mesmo livro duas vezes. Se pudesse devolver ou trocar por outro, ótimo. Se não, presenteava os amigos com os duplicados. Ganhei uns dois livros dele dessa forma.

Um dia chegou entusiasmado com um prospecto sobre a nova edição da Enciclopédia Britânica. Falou maravilhas e disse que estava pensando em comprar. Como eu sabia que já possuía outras enciclopédias, perguntei-lhe o que iria fazer com uma enciclopédia nova, se já não tinha mais filhos em idade escolar e, principalmente, se já possuía uma edição anterior.

– Vocês são uns ignorantes – irritou-se ele. – vocês acham que enciclopédia é só para fazer trabalho escolar de menino? Além do mais, ela foi totalmente reprogramada e ampliada, é outra enciclopédia!

– Porque você então não se desfaz da edição antiga? – perguntei a ele.

Algum tempo depois, chega ele todo sorridente:

– Comprei a Britânica. É uma beleza!

– E a outra, vendeu?

– Não, resolvi ficar com as duas, pois são muito diferentes...

– Animal!!!!


Noutro dia, chegou ao serviço com um livro grande, novinho, pedindo-nos para escrever uma dedicatória para ele mesmo. Perguntei o que pretendia com isso:

– Esse livro custou caro pra burro e, se eu chegar com ele lá em casa, a Dona Maria vai reclamar que estou gastando muito.

A dedicatória saiu mais ou menos assim: “Ao prezado Rodrigo, com a amizade de...” e vinham os nomes assinados de uns três colegas.

Quando mostrou para a esposa o “presente” que havia ganhado, ouviu o comentário irônico:

– É, seus colegas devem gostar muito mesmo de você, estão sempre te dando livros de presente sem nenhum motivo!


De outra vez, chegou com um livro comprado em um sebo, que era na verdade um catálogo de equipamentos e artefatos hospitalares. Disse que iria dar de presente para um dos irmãos, que estava fazendo aniversário. O catálogo era bacana mesmo, em inglês, publicado por volta de 1910, capa dura, os desenhos feitos a bico de pena, folhas em papel couchê brilhante, uma beleza. Ficamos olhando os desenhos e as ferramentas bizarras ali oferecidas: fórceps, carrinhos para transportar cadáveres, ferramentas para amputação e coisas do gênero. Alguns dias depois perguntei se o irmão havia gostado do presente:

– Eu não dei o livro, fiquei com ele para mim e comprei outro para ele.


Antes de aposentar-se, morava em uma casa no bairro Serra. Essa casa tinha um cômodo totalmente ocupado por livros e estantes, igual a uma biblioteca. Havia também livros espalhados por outros aposentos, tal a quantidade. Um dia comentou que havia mandado instalar umas prateleiras, presas com corrente, sobre a cabeceira da cama dos dois filhos homens que moravam com ele. Começamos a caçoar, dizendo que ele tinha feito uma armadilha para se livrar dos filhos “delinquentes”. Quando uma das duas filhas do segundo casamento resolveu morar com a avó, o Digão não perdeu tempo: imediatamente instalou estantes no quarto desocupado.


Além dos livros comprados em duplicata por engano, ganhei dele outros livros, sempre com dedicatória. Um catecismo católico atualizado, um livro sobre música clássica e um sobre a presença de cristãos-novos no Brasil.

Segundo ele, por volta de 1500 e poucos, os judeus de Portugal foram obrigados a converter-se ao cristianismo, na marra. Após a “conversão”, foram batizados e tiveram os sobrenomes mudados para nomes de animais e plantas, criaturas de Deus. Surgiram aí os Pereira, Figueira, Pinto, Coelho, Laranjeira, etc. A designação “cristão-novo” foi utilizada para diferenciar dos cristãos originais, cristãos-velhos, portanto. Muitos desses judeus “convertidos” vieram para o Brasil, fugindo da Inquisição, etc. Tempos depois dessa aula dada por ele, ganhei o tal livro, com a seguinte dedicatória: “Ao amigo ..., um cristão-novo da melhor categoria”


Tendo ficado em São Paulo por quase um mês, voltou com uns dez ou mais livros, sobre os mais diversos assuntos, cada um mais inútil que o outro. Entre os títulos havia coisas como: “Perfil Geológico da Serra do Mar no trecho tal”, “Conheça o interior de sua calculadora científica”; “A economia do Rio de Janeiro no Século XVIII”, as coisas mais estapafúrdias ou inúteis.

– Para que serve essa merda? – perguntei. A resposta foi a habitual:

– Você é um ignorante! Olha só que troço joia esse livro sobre circuitos de televisão!

– É, só se for usado para calçar uma mesa ou cadeira manca!


E ele se ria, divertido.

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