A PAIXÃO POR LIVROS
O Digão tinha uma paixão desmedida por
livros. Para ele, um livro era muito mais que um objeto de leitura. Era sempre
o presente escolhido para dar a alguém, era sempre o presente desejado no
aniversário ou Natal. Os livros novos eram manuseados, cheirados, examinada a
textura e a gramatura das folhas. Eram, enfim, tratados quase como uma joia.
Quando perguntado sobre a quantidade, sempre
dizia que tinha uns cinco mil volumes. Esse número permaneceu estável ao longo
do tempo, não só por não tê-los mais contado, como, segundo ele, pela frequente
subtração de romances cometida pelas filhas do primeiro casamento, fato
compensado pela aquisição permanente de novos livros. Além dos livros,
encadernava também as revistas que comprava – National Geographic,
Scientific American, Veja (desde o primeiro número, se não me engano).
O mesmo fazia com jornais especiais que já haviam saído de circulação, caso do
jornal Opinião e até de um jornal do século XIX.
Aos sábados ia à Livraria Van Damme, onde era
amigo do proprietário. Durante a semana, diariamente ou quase isso, ia à
Livraria Ouvidor que ficava a um quarteirão de distância da empresa onde
trabalhávamos. Ali folheava livros e revistas importadas, encomendava e
comprava compulsivamente, a ponto de ter conseguido com o gerente a comodidade
de pagar após o recebimento do salário. Comprava “na caderneta”, como ainda se
faz em alguns armazéns de bairro. Como comprava muito e sobre qualquer assunto,
útil ou inútil, às vezes comprava o mesmo livro duas vezes. Se pudesse devolver
ou trocar por outro, ótimo. Se não, presenteava os amigos com os duplicados.
Ganhei uns dois livros dele dessa forma.
Um dia chegou entusiasmado com um prospecto
sobre a nova edição da Enciclopédia Britânica. Falou maravilhas e disse que
estava pensando em
comprar. Como eu sabia que já
possuía outras enciclopédias, perguntei-lhe o que iria fazer com uma
enciclopédia nova, se já não tinha mais filhos em idade escolar e,
principalmente, se já possuía uma edição anterior.
– Vocês são uns ignorantes – irritou-se ele. –
vocês acham que enciclopédia é só para fazer trabalho escolar de menino? Além
do mais, ela foi totalmente reprogramada e ampliada, é outra enciclopédia!
– Porque
você então não se desfaz da edição antiga? – perguntei a ele.
Algum tempo depois, chega ele todo sorridente:
– Comprei a Britânica. É uma beleza!
– E a outra, vendeu?
– Não, resolvi ficar com as duas, pois
são muito diferentes...
– Animal!!!!
Noutro dia, chegou ao serviço com um livro
grande, novinho, pedindo-nos para escrever uma dedicatória para ele mesmo.
Perguntei o que pretendia com isso:
– Esse livro custou caro pra burro e, se
eu chegar com ele lá em casa, a Dona Maria vai reclamar que estou gastando
muito.
A dedicatória saiu mais ou menos assim: “Ao
prezado Rodrigo, com a amizade de...” e vinham os nomes assinados de
uns três colegas.
Quando mostrou para a esposa o “presente” que
havia ganhado, ouviu o comentário irônico:
– É, seus colegas devem gostar muito
mesmo de você, estão sempre te dando livros de presente sem nenhum motivo!
De outra vez, chegou com um livro comprado em
um sebo, que era na verdade um catálogo de equipamentos e artefatos
hospitalares. Disse que iria dar de presente para um dos irmãos, que estava
fazendo aniversário. O catálogo era bacana mesmo, em inglês, publicado por
volta de 1910, capa dura, os desenhos feitos a bico de pena, folhas em papel
couchê brilhante, uma beleza. Ficamos olhando os desenhos e as ferramentas
bizarras ali oferecidas: fórceps, carrinhos para transportar cadáveres,
ferramentas para amputação e coisas do gênero. Alguns dias depois perguntei se
o irmão havia gostado do presente:
– Eu não dei o livro, fiquei com ele
para mim e comprei outro para ele.
Antes de aposentar-se, morava em uma casa no
bairro Serra. Essa casa tinha um cômodo totalmente ocupado por livros e
estantes, igual a uma biblioteca. Havia também livros espalhados por outros
aposentos, tal a quantidade. Um dia comentou que havia mandado instalar umas
prateleiras, presas com corrente, sobre a cabeceira da cama dos dois filhos
homens que moravam com ele. Começamos a caçoar, dizendo que ele tinha feito uma
armadilha para se livrar dos filhos “delinquentes”. Quando uma das duas filhas
do segundo casamento resolveu morar com a avó, o Digão não perdeu tempo:
imediatamente instalou estantes no quarto desocupado.
Além dos livros comprados em duplicata por
engano, ganhei dele outros livros, sempre com dedicatória. Um catecismo
católico atualizado, um livro sobre música clássica e um sobre a presença de
cristãos-novos no Brasil.
Segundo ele, por volta de 1500 e poucos, os
judeus de Portugal foram obrigados a converter-se ao cristianismo, na marra.
Após a “conversão”, foram batizados e tiveram os sobrenomes mudados para nomes
de animais e plantas, criaturas de Deus. Surgiram aí os Pereira, Figueira,
Pinto, Coelho, Laranjeira, etc. A designação “cristão-novo” foi utilizada para
diferenciar dos cristãos originais, cristãos-velhos, portanto. Muitos desses
judeus “convertidos” vieram para o Brasil, fugindo da Inquisição, etc. Tempos depois
dessa aula dada por ele, ganhei o tal livro, com a seguinte dedicatória: “Ao amigo ..., um cristão-novo da melhor categoria”.
Tendo ficado em
São Paulo por quase um mês, voltou
com uns dez ou mais livros, sobre os mais diversos assuntos, cada um mais
inútil que o outro. Entre os títulos havia coisas como: “Perfil Geológico da Serra do Mar no trecho
tal”, “Conheça o interior de sua calculadora científica”; “A economia do Rio de
Janeiro no Século XVIII”, as coisas mais estapafúrdias ou inúteis.
– Para que serve essa merda? – perguntei. A resposta
foi a habitual:
– Você é um ignorante! Olha só que troço
joia esse livro sobre circuitos de televisão!
– É, só se for usado para calçar uma
mesa ou cadeira manca!
E ele se ria, divertido.
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