Alguns dos melhores momentos da minha
infância e pré-adolescência eu passei lendo os livros infantis de Monteiro
Lobato. Hoje, quando ouço falar de críticas a esses livros por seu conteúdo
"racista", eu tenho vontade de vomitar.
Só falta alguém propor que sejam reescritos
ou que sejam retirados os trechos que "ofenderam" algum leitor mais
sensível (e ignorante). É claro que se isso vingar, a cada década, qualquer
livro de qualquer autor poderá ser submetido à revisão e nova censura, nova
crítica, até que nada mais reste da obra original. Espero já estar morto se
isso um dia acontecer. Mas, voltemos ao inofensivo Lobato.
Os assuntos eram os mais variados e, podem
acreditar, muito instrutivos, sem ser cansativos. Exemplos: Viagem ao céu;
História do mundo para as crianças; Emília no país da gramática; Aritmética da
Emília; Geografia de Dona Benta; História das invenções e
muitos outros.
Para mim, o mais interessante de todos os
infantis é “A Chave do Tamanho”. O tema é o seguinte: a Emília decide ir
a algum lugar onde estão as “chaves” que controlam tudo, para desligar a
"chave da guerra" (esse livro foi escrito durante a Segunda Guerra
Mundial). Como ela era muito pequena e os "disjuntores" ficavam lá no
alto, ela erra a mão e, em vez da chave da guerra, desliga
quase totalmente a chave
do tamanho, fazendo com que toda a humanidade fique reduzida a uma
altura menor que a de um passarinho, se não me engano. Creio que as pessoas são
confundidas com "baratas descascadas". Esse livro é uma viagem!
Como a ideia da reverência não é colocar
textos muito longos, eu tive de apelar para um conto bem pequeno, extraído do
livro “Cidades Mortas”, que é literatura para adultos. Mas o sujeito "chutava
bem com os dois pés", era um craque. Olhaí.
Chamava-se João Teodoro, só. O mais
pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas:
não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos
importância no mundo era João Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a
hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que
todos queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com
aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.
– Isto já foi muito melhor, dizia
consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um, e bem ruinzote. Já teve
seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório.
Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho.
Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…
João Teodoro entrou a incubar a ideia
de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o
convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou
arranjo possível.
– É isso, deliberou lá por dentro.
Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de
nada de nada, então eu arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia aconteceu a grande novidade: a
nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se
fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora
nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…
Ser delegado numa cidadezinha daquelas
é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os
outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo.
Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de
Itaoca!
João Teodoro caiu em meditação
profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela
madrugada, botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.
Antes de deixar a cidade, foi visto
por um amigo madrugador.
– Que é isso, João? Para onde se atira
tão cedo, assim de armas e bagagens?
– Vou-me embora, respondeu o
retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
– Mas como? Agora que você está
delegado?
– Justamente por isso. Terra em que
João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
E sumiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário