VIDA
CRISTÃ
Quem
toma conhecimento dos casos já contados pode imaginar que meu amigo era um debochado,
uma pessoa vazia e irresponsável, o que é um ledo engano. O Digão era um cavalheiro,
profissional correto e interessado, marido dedicado, pai severo e, às vezes, impaciente,
sério e respeitoso ao tratar com qualquer mulher e um católico fervoroso.
Um
de seus nove filhos, não sei se do primeiro ou do segundo casamento, nasceu com
anencefalia. Segundo ele, não havia a mais remota chance da criança sobreviver
sem o auxílio de um respirador artificial. Diante disso, ele perguntou ao
médico quais eram os procedimentos médicos obrigatórios. O médico respondeu que
tudo o que a ética médica mandava fazer já havia sido feito.
Ele
então pediu que não fosse feito mais nada. Com a criança nos braços, batizou-o
ele mesmo, abençoou-o e ficou ali carinhosamente abraçado com o menino, até que ele morresse.
A
morte da primeira mulher, causada por uma transfusão errada, se não me engano,
provocou nele uma recusa total de Deus. Dizia coisas como –“se Deus existe eu quero que um raio caia sobre minha cabeça”. Mas,
perto de sua casa, na Serra, havia um convento de dominicanos, religiosos
extremamente cultos, “guardiões da fé”, segundo ele. Passou a frequentar a
biblioteca do convento, a conversar com os irmãos e a alimentar-se do conforto
espiritual ali encontrado. Resultado: tornou-se definitivamente um católico
praticante, tão convicto de sua fé, tão religioso que foi admitido como irmão
leigo. Na ordem, ele tinha a seguinte identificação: Frei Vicente de Ferrer,
irmão leigo da Ordem Terceira dos Dominicanos.
Muitas e muitas vezes fui à sua sala, onde conversávamos sobre Religião, sobre religiões, Deus e fé, onde expunha minhas dúvidas e ele me acalmava com sua fé serena e profunda. Por conta dessas conversas, emprestou-me um livro interessantíssimo sobre o Santo Sudário, escrito por um médico legista francês, cujo título é A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião.
Numa
dessas conversas, comentei com ele que tinha lido uma frase estranha do
Einstein, que era alguma coisa assim: “acredito
no Deus de Spinoza” e perguntei o que poderia significar. Ele me disse que
Spinoza era um filósofo judeu, mas que não sabia o que isso significava.
Esqueci o assunto, até o dia em que entregou umas dez folhas sobre o Spinoza,
só que manuscritas por ele! Ele deve ter gasto um tempo filhadamãe copiando os
textos sei lá de onde, só para atender a um amigo, só para acalmar a minha fé
vagabunda e oscilante (ao contrário da sua, que era sólida e tranquila). Figuraça!
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