A
PRIMEIRA VISITA
Depois
que eu saí da empresa onde trabalhávamos e ele se aposentou, fiquei mais de dez
anos sem vê-lo e sem nenhum outro tipo de contato. Como gostava muito dele, um
dia resolvi ligar, mas seu nome não constava mais na lista telefônica. Assim,
liguei para o Xulipa, que me deu o telefone e informou que ele havia mudado
para o sítio. Xulipa era o nome utilizado pelo Digão para designar o Diguinho,
seu filho. De posse do novo número, liguei para ele, que teve a previsível reação
de impaciência:
– Alô, quem está
falando?
– QUER FALAR COM QUEM?
– Quero falar com o
Hans, um velho filho da puta!
– Quem tá falando? É você
mesmo? Ô menino, que alegria! Achei que você tinha morrido ou mudado para Três
Marias, pois você sumiu!
Hans
era um apelido que criei para ele a partir de um trocadilho infame, pois
vivíamos ironizando sua idade, chamando-o de “Véio”. Um dia, quando o chamei de
Hans, reagiu:
– Porque Hans? Pelo meu
perfil ariano?
– Não, pô! Hans , de
Hans-cião.
– Vá à puta que o pariu!
Depois
desse telefonema, quando insistiu para que eu fosse visitá-lo, às vezes eu
ligava para ele, às vezes era ele, mas de forma muito esporádica. A
minha mulher, super carinhosa, mandava cartões de Natal, mesmo sem conhecê-lo
pessoalmente.
Um
dia ele ligou, dizendo que estava com saudades e que eu precisava visitá-lo,
pois não saía mais de casa.
– Vem me visitar, pô! Eu
não demoro muito mais não. Tirei uma radiografia onde apareceram umas manchas
no pulmão, o médico olhou com cara muito feia, mas eu não quis nem saber o que
é, pois na idade em que estou, não pretendo ser operado.
Depois
de ser transferido para um novo setor, onde passei a fazer inspeções
trimestrais em unidades da região metropolitana, resolvi visitá-lo, instado
por minha mulher, que achava um absurdo o fato de eu não procurar um amigo tão
querido e tão lembrado.
Chegando
ao sítio, apropriadamente chamado de Sítio das Flores, fomos recebidos por ele
e por sua esposa, Dona Maria, uma senhora elétrica, irrequieta e simpaticíssima.
Ao
ser apresentada a ele, minha mulher fez um comentário surpreendente e muito
feliz, em virtude das muitas histórias que já tinha ouvido a seu respeito:
– Hoje eu estou
conhecendo um mito!
Depois
das apresentações de praxe, a Dona Maria já foi logo sequestrando minha mulher para mostrar a ela o sítio e
deixando-me a conversar com o Digão.
Descobri
que sua esposa ficava o dia inteiro mexendo no sítio, só voltando para almoçar ou
ao anoitecer, ora plantando, ora podando, cuidando da criação, supervisionando
a construção de um pequeno açude (“para criar peixe”), uma azáfama sem fim. De
tal sorte que, quando alguém da família ligava procurando por ela, ele dizia em
tom de piada:
– Está lá no pasto, está
pastando.
Graças
a essa faina incansável da Dona Maria, o sítio era um lugar lindo, encantador,
com a frente toda gramada e cheia de flores. Além
da casa original, pequena, o sítio tinha também um galpão de madeira,
transformado inicialmente em sala de lazer e jogos, logo após a compra do
imóvel.
O
galpão era uma construção simples (originalmente erguido em caráter provisório),
mas confortável pois, além do salão, tinha dois quartos e um banheiro. Por ter
sido o local naturalmente escolhido para abrigar os cinco mil livros que tinha,
organizados em estantes de aço como em uma biblioteca, acabou se transformando
na moradia real do Digão, que ali passava o dia todo, lendo ou assistindo
televisão. Por problemas de ronco (provavelmente dos dois), cada um ocupava um
dos quartos.
No
galpão propriamente dito, além das estantes repletas de livros e publicações, ficava
uma mesa ou escrivaninha, local predileto de leitura, um jogo de sofás, televisão,
geladeira, vários objetos de decoração e um cilindro grande de oxigênio, dotado
de máscara, usado cada vez com mais frequência pelo Digão, em virtude de seu
enfisema ou coisa parecida. Quando nos despedimos, reiterou a alegria causada
por nossa visita, insistindo para que voltássemos outra vez.
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