domingo, 10 de agosto de 2014

HISTÓRIAS DO DIGÃO - PARTE XIV

A PRIMEIRA VISITA

Depois que eu saí da empresa onde trabalhávamos e ele se aposentou, fiquei mais de dez anos sem vê-lo e sem nenhum outro tipo de contato. Como gostava muito dele, um dia resolvi ligar, mas seu nome não constava mais na lista telefônica. Assim, liguei para o Xulipa, que me deu o telefone e informou que ele havia mudado para o sítio. Xulipa era o nome utilizado pelo Digão para designar o Diguinho, seu filho. De posse do novo número, liguei para ele, que teve a previsível reação de impaciência:

 Alô, quem está falando?

 QUER FALAR COM QUEM?

 Quero falar com o Hans, um velho filho da puta!

 Quem tá falando? É você mesmo? Ô menino, que alegria! Achei que você tinha morrido ou mudado para Três Marias, pois você sumiu!

Hans era um apelido que criei para ele a partir de um trocadilho infame, pois vivíamos ironizando sua idade, chamando-o de “Véio”. Um dia, quando o chamei de Hans, reagiu:

 Porque Hans? Pelo meu perfil ariano?

 Não, pô! Hans , de Hans-cião.

 Vá à puta que o pariu!

Depois desse telefonema, quando insistiu para que eu fosse visitá-lo, às vezes eu ligava para ele, às vezes era ele, mas de forma muito esporádica. A minha mulher, super carinhosa, mandava cartões de Natal, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente.

Um dia ele ligou, dizendo que estava com saudades e que eu precisava visitá-lo, pois não saía mais de casa.

 Vem me visitar, pô! Eu não demoro muito mais não. Tirei uma radiografia onde apareceram umas manchas no pulmão, o médico olhou com cara muito feia, mas eu não quis nem saber o que é, pois na idade em que estou, não pretendo ser operado.

Depois de ser transferido para um novo setor, onde passei a fazer inspeções trimestrais em unidades da região metropolitana, resolvi visitá-lo, instado por minha mulher, que achava um absurdo o fato de eu não procurar um amigo tão querido e tão lembrado.

Chegando ao sítio, apropriadamente chamado de Sítio das Flores, fomos recebidos por ele e por sua esposa, Dona Maria, uma senhora elétrica, irrequieta e simpaticíssima.

Ao ser apresentada a ele, minha mulher fez um comentário surpreendente e muito feliz, em virtude das muitas histórias que já tinha ouvido a seu respeito:

 Hoje eu estou conhecendo um mito!

Depois das apresentações de praxe, a Dona Maria já foi logo sequestrando  minha mulher para mostrar a ela o sítio e deixando-me a conversar com o Digão.

Descobri que sua esposa ficava o dia inteiro mexendo no sítio, só voltando para almoçar ou ao anoitecer, ora plantando, ora podando, cuidando da criação, supervisionando a construção de um pequeno açude (“para criar peixe”), uma azáfama sem fim. De tal sorte que, quando alguém da família ligava procurando por ela, ele dizia em tom de piada:

 Está lá no pasto, está pastando.

Graças a essa faina incansável da Dona Maria, o sítio era um lugar lindo, encantador, com a frente toda gramada e cheia de flores. Além da casa original, pequena, o sítio tinha também um galpão de madeira, transformado inicialmente em sala de lazer e jogos, logo após a compra do imóvel.

O galpão era uma construção simples (originalmente erguido em caráter provisório), mas confortável pois, além do salão, tinha dois quartos e um banheiro. Por ter sido o local naturalmente escolhido para abrigar os cinco mil livros que tinha, organizados em estantes de aço como em uma biblioteca, acabou se transformando na moradia real do Digão, que ali passava o dia todo, lendo ou assistindo televisão. Por problemas de ronco (provavelmente dos dois), cada um ocupava um dos quartos.

No galpão propriamente dito, além das estantes repletas de livros e publicações, ficava uma mesa ou escrivaninha, local predileto de leitura, um jogo de sofás, televisão, geladeira, vários objetos de decoração e um cilindro grande de oxigênio, dotado de máscara, usado cada vez com mais frequência pelo Digão, em virtude de seu enfisema ou coisa parecida. Quando nos despedimos, reiterou a alegria causada por nossa visita, insistindo para que voltássemos outra vez.


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