Na edição número 2320 da revista VEJA, publicada em 8 de maio de 2013, eu li um artigo do Roberto Pompeu de Toledo, que tinha o título "Fábulas do Desengano". Há muito tempo sou fã desse jornalista, pois tudo o que escreve me deixa babando de admiração, seja pela elegância do estilo, clareza de ideias ou pertinência das observações e comentários.
Bom, eu gostei tanto do artigo citado, que tive o trabalho de escanear o texto via OCR e revisar para ficar igualzinho na revista. Aí mandei por e-mail para meus filhos. Lembrando-me disso, achei que esse texto seria uma ótima forma de reverenciar seu autor. Se a VEJA não fosse a excelente revista que é, só os artigos da última página, onde se alternam Roberto Pompeu de Toledo e J. R. Guzzo, já fariam valer a pena a assinatura ou compra avulsa dessa publicação.
Um dos autores que eu já reverenciei neste
blog é justamente J. R. Guzzo. E o texto escolhido foi “Analfabetos Voluntários”. Talvez pela
visibilidade do autor, talvez por ter sido extraído dessa revista, talvez apenas
por ser um excelente e super bem escrito artigo, o fato é que esse post
tornou-se o top de linha do blog, com mais de 180 acessos (este é um blog modesto e praticamente invisível, porque tem, no
máximo, uns 3,5 leitores).
Não duvido que o homenageado de hoje vá pelo mesmo caminho, pois ele e o Guzzo se equivalem em excelência. Roberto Pompeu de
Toledo, portanto, é "O Cara" desta semana. Por isso, espero que meus 3,5 leitores também o
apreciem. E como o artigo escaneado é de 2013, tomo a liberdade de transcrevê-lo na íntegra, porque deve ser difícil encontrá-lo e, claro, porque é ótimo. Vamos lá:
Uma das passagens mais conhecidas de Dostoievski é
a história do Grande Inquisidor, relatada no livro Os Irmãos Karamazov. O cenário
é Sevilha, nos tempos da Inquisição. Ainda na véspera, uma centena de hereges
havia sido queimada, para maior glória de Deus, num soberbo auto de fé. Eis que
agora... quem aparece, caminhando suavemente, na mesma praça? Ele mesmo: Jesus!
Estava escrito que um dia voltaria. Decidiu voltar, bem de acordo com seu
conhecido gosto pelas estratégias de risco, num momento da história em que os
que se fizeram de donos de sua mensagem adotaram a política de silenciar pelas chamas
os insubmissos, os desobedientes, os desviantes ou os considerados como tais.
A multidão se aglomera diante dele. Vem um cego e
pede: "Senhor, cura-me". Um gesto, e o cego vê. O povo rejubila-se,
canta hosanas. No momento em que adentra a catedral, encontra o pequeno caixão
de uma criança morta. A mãe se aproxima, entre lágrimas. "Ressuscita minha
filha." Ele ordena à criança: "Levanta-te" - e ela se levanta.
Nesse momento, surge em cena o Grande Inquisidor, É um velho alto, de face seca
e olhar no qual brilha um sinistro clarão. Ele viu tudo: o cego que agora
enxerga, a criança que voltou à vida. Aponta o dedo para o autor dos milagres e
ordena aos guardas: "Prendam esse homem". O preso é recolhido ao
calabouço dos hereges. À noite, o Grande Inquisidor aparece na cela. É um homem
muito ciente de seus deveres e de sua autoridade e por isso lhe comunica que,
no dia seguinte, será queimado. Não dá ao condenado nem o direito de palavra.
Ordena-lhe: "Não digas nada, cala-te. Que poderias tu dizer? Não tens o
direito de acrescentar uma só palavra ao que disseste outrora".
Dostoievski tinha em mente Jesus e os descaminhos
de sua herança nas mãos dos que dela se apropriaram. Uma moral expandida da fábula poderia
incluir os grandes pensadores, os políticos, os economistas ou os artistas em
nome dos quais seus seguidores, admiradores ou intérpretes haurem prestígio e
autoridade. E se eles voltassem? Se Marx voltasse, ou Freud, ou Darwin? Como
reagiriam os chefes de suas respectivas igrejas? Para ficar mais perto, e se
Bolívar voltasse à Venezuela? Teria ele o direito de acrescentar alguma palavra
ao que disse outrora?
O escritor italiano Italo Svevo (1861-1928) deixou
esboçada uma história, que afinal a morte o impediu de desenvolver, na qual um velho, ao
preparar-se para dormir, à meia-noite, lembra que essa é a hora em que
Mefistófeles costuma aparecer e propor seus famosos pactos. A esposa, na cama,
já dorme placidamente. O velho deixa-se levar pelo devaneio e conclui que -
sim, por que não? – de bom grado cederia a alma ao demônio. A questão é: o que
pedir em troca? Imagina Mefistófeles, satisfeito por ter amealhado mais um, à
espera apenas de que ele declinasse o preço. O velho pensa, pensa, e não chega
a uma conclusão. Pedir de volta a juventude? Mas por quê, se ela é insensata e cruel,
ainda que a velhice seja intolerável? A imortalidade? Por quê, se a vida é
insuportável, ainda que nos atormente a angústia da morte? O velho se dá conta de
que nada tem a pedir e, ao imaginar o embaraço do Mefisto, diante de tão
surpreendente situação, põe-se a rir, e tanto que a mulher acorda. "Rindo,
a esta hora", diz ela."Ê homem de sorte."
A fábula de Svevo é parecida com uma outra, de
Monteiro Lobato, nesse grande livro que é Reinações de Narizinho. Dona Aranha,
exímia costureira, faz o vestido de baile com o qual Narizinho vai se apresentar
à corte do Príncipe Escamado. O vestido fica tão bonito que o espelho diante do
qual a menina foi prová-lo arregala os olhos de espanto, e, à medida que são
acrescentados os adereços, mais os arregala, e mais ainda, até que, de tanto se
espantar, racha de alto a baixo. Era o sinal que Dona Aranha esperava desde que
tinha nascido e, de menina que era, fora transformada em aranha por uma fada
má. Ao mesmo tempo, uma fada boa lhe dera aquele espelho, prometendo que, no dia
em que fizesse o vestido mais lindo do mundo, deixaria de ser aranha para ser o
que quisesse. E agora? Dona Aranha pensa, pensa. Transformar-se em quê?
Princesa? Sereia? Pensa, pensa, e desiste. "Acho melhor ficar no que sou.
Estou acostumadíssima." Tanto na fábula de Svevo quanto na de Lobato a
magia é derrotada. Por isso são tão saborosas. É uma delícia ver seres
superpoderosos, como Mefistófeles ou as fadas, reduzidos à impotência, diante
de quem despreza os seus serviços.