Recentemente eu disse
que voltaria a ler só para aprender a escrever. E é justamente isso que estou
tentando fazer, ao começar a reler as crônicas do Rubem Braga. Como escrevia
bem! Na quinta ou sexta crônica já fiquei louco de vontade de compartilhar sua
leitura com os amigos e amigas do Blogson. Olha que maravilha:
Éramos
dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois
jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força
Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três
morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita
cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.
Falamos
de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou
assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois
de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi
decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política.
Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do
separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram
outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos
situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram
brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis,
os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia
funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento.
Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho
funcionário municipal.
Mas
nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a
Força Pública, nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima
de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e
tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco
extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O
tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.
É
inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros
como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam
molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou
três fios.
Havia
arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de
vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que
sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que
nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez
um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era
sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão
docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria,
levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm
certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um
salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e
puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os
torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu
tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as
terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores,
terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde
havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve —
do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto
abençoado de coisas simples e boas.
Era
o encanto de Minas.
Setembro,
1934
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