sexta-feira, 15 de abril de 2016

OS FILHOS DE FRANCISCO (E JULIETA) - 04

Este post saiu originalmente em 28/04/2015, com o título "Seu Nome era Omir", como homenagem póstuma ao tio materno de personalidade mais "literária" da família e falecido pouco tempo antes. Como estou contando casos dos irmãos de minha mãe, achei que seria injusto deixá-lo separado dos demais, (segregado tal como foi um pouco quando era vivo). Por isso, resolvi republicar o post com o título da série que está rolando agora. Bora lá.


A família de meus avós maternos era daquelas numerosas, à moda antiga. Tiveram onze filhos, mas um morreu ainda na primeira infância. Dos outros dez, Omir era o mais alternativo, o mais tosco e o mais folclórico. Ou, se preferirem, o mais outsider, mais hardcore. O mais livre, enfim. Antes dos hippies, antes da Tropicália, ele foi verdadeiramente livre. 

Nenhuma convenção o inibia, nada o aprisionava. Talvez por tudo isso, a maioria dos sobrinhos nunca o chamou de tio. Era quase um personagem felliniano. Desde pequeno revelou-se uma pessoa avessa a qualquer tipo de controle, um verdadeiro rebelde sem causa, ou melhor, um rebelde sem calça.  

Segundo minha mãe, levá-lo ao grupo escolar era uma luta que se repetia diariamente. Não sei se ele tirava toda a roupa antes de ser levado à escola ou depois de fugir de lá. O que sei é que bastava minha avó, minha mãe ou quem quer que o acompanhasse ir embora, para ele escapar da sala de aula e voltar igual uma bala para casa, chegando antes de todo mundo. Com isso, provavelmente não concluiu nem o ensino básico. Minha mãe tinha uma foto dele nessa época, em que aparece peladão. Prova material do delito recorrente.

Na época de servir exército foi ainda melhor. Quando era designado para ficar de guarda à noite, lá pelas tantas, largava o fuzil e ia dormir em casa. Na volta, claro, cadeia. Isso se repetiu algumas vezes, até o dia em que resolveu não voltar mais. Resultado: ficou sem o Certificado de Reservista, necessário para uma penca de coisas, tais como título de eleitor, carteira profissional e por aí. Muitos anos depois, recebeu uma carta do Exército convidando-o a regularizar sua situação. Simplesmente ignorou.

Com esses ótimos “pré-requisitos”, acabou virando mecânico de automóveis. Pelas amizades nesse meio, o próximo passo foi o alcoolismo.

Não sei se era ou não um bom mecânico. Só sei que um dia ele e os amigos resolveram construir um carro. Não sei direito como fizeram, mas ficou muito legal. Pelo menos para mim, que era criança. Um dia chega o Omir e mais um ou dois amigos dentro de um carrinho sem capota, prateado, pois estava na lata, literalmente. Tinham construído uma carroceria de linhas curvas e esportivas com chapas de aço galvanizado, montada sobre o chassi de algum carro destruído. Depois, para minha decepção, pintaram o carro todo. Um dia perguntei que fim tinha levado o tal carro. Fiquei sabendo que uma manobra desastrada em uma curva tinha feito o carro cair em uma vala ou córrego. Uma parte da nascente indústria automobilística nacional foi pro saco nesse dia.

Meu pai contava que um dia chegou em casa e escutou o Omir "fazendo uns barulhos muito feios dentro do quarto e com a porta fechada". Ficou preocupado e perguntou:
- Omir, você está sentindo alguma coisa?

Abrindo a porta, meu tio respondeu que estava ensaiando, porque ia fazer um teste no conservatório, pois pretendia virar cantor de ópera. E papai acrescentava que nunca ouviu nada mais horrível. 

Ainda segundo minha irmã, nossa mãe contava - fazendo cara de contrariada - que seu irmão uma vez cismou que queria ser padre e todo mundo foi na onda dele.  Minha mãe chegou a ir a um seminário e conversou com os responsáveis de lá, mas, "felizmente ele desistiu". Certamente, ainda não havia sido enfeitiçado pela futura companheira de infortúnios.

Bom, eu sou católico, mas o Omir, com suas maluquices, até que ficaria bem em uma “sessão de descarrego” de alguma igreja evangélica. Certamente o “pedido” de casamento seria um bom motivo para isso. Esse caso também foi lembrado por minha irmã e é muito engraçado. Para não perder o sabor, transcrevo como recebi:
Ele jogou uma bomba dentro da casa da Tia Elba e papai dizia que foi assim que ele a despertou e conquistou. Como ele mesmo repetia, “eu sou eu e volto troco”!

Com um jogo de sedução e conquista tão sofisticado, um presente para sua futura e sofredora esposa não poderia ser qualquer um, desses que as pessoas normais compram em lojas. Tinha de ser diferente. Bem diferente.

Um dia eu o vi pegar um pedaço de tampa de privada (eram feitas de madeira, na época. E grossas, para ficar anatômicas) e começar a esculpir alguma coisa. Desse material de origem tão “nobre” fez um coqueirinho estilizado. O tronco foi perfurado (provavelmente com a pua de meu avô) até ficar todo oco. Depois de pronta a escultura, a peça foi devidamente lixada e um vidrinho com perfume foi alojado na parte oca.

Nessa época, alguns medicamentos ministrados através de injeção vinham dentro de vidrinhos cilíndricos tampados com uma tampinha de borracha, por sua vez lacrada com um anel de metal. Creio que o medicamento podia ser retirado introduzindo-se a agulha da seringa diretamente na borracha macia da tampa (quando me lembro desses detalhes, dá vontade de dizer: “gente, eu sou velho pra caramba!!!”). Isso não vem ao caso. O que conta é que o tal vidrinho de perfume, um presente para a namorada, foi anteriormente a embalagem de algum medicamento. Muito chique!

Depois de tanta “originalidade”, acabaram casando-se. Minha tia era uma mulata de cabelo “ruim”, de pele clara e olhar meio aéreo, que deve ter sofrido demais com a inconstância, irresponsabilidade e alcoolismo do marido. Tiveram cinco filhos. Além da filharada, criaram ainda o filho de uma irmã falecida.

Um dia, provavelmente alcoolizado, chegou à casa de minha avó dirigindo um carro que tinha pegado para consertar. Além do o primeiro filho, então com uns três anos de idade, alguns passageiros ilustres o acompanhavam: um amigo (provavelmente encachaçado como ele) e duas ou três putas (a oficina onde trabalhava ficava bem no meio da zona boêmia).  Ao ver o irmão em tão distinta companhia, minha tia Aidê deu-lhe um esporro fenomenal e ele se mandou, visivelmente contrariado.  


O que me deixa às vezes perplexo é pensar que os irmãos e cunhadas de minha mãe sempre demonstraram de forma explícita gostar muito de mim, mesmo que eu nunca tenha feito nada de significativo para que isso acontecesse. Sei lá, deviam ter alguma simpatia (ou pena) pelo meu jeito meio avacalhado e sem frescura de tratá-los. Com o Omir e esposa aconteceu exatamente assim.

Ela, talvez pela vida difícil que levava, talvez pelas muitas humilhações que sofreu de forma velada ou escancarada, não olhava muito nos olhos da pessoa com quem conversava. Talvez daí a expressão meio aérea que citei. Quando eu já estava adulto, me procurou meio sem graça, quase pedindo desculpa, e perguntou se eu aceitava ser o padrinho de batismo da quarta filha. A madrinha seria uma de minhas primas. Claro que aceitei. Mas, como nunca liguei muito para essa afilhada, posso dizer que sou um padrinho de merda, mesmo tendo sempre muita simpatia por seus pais.

A filha caçula tem idade próxima à de nosso filho mais velho. Até pela imensa diferença de idade, tive muito pouco contato com ela. As únicas coisas que sei é que teve uns dois ou três filhos, entregou-os para a sogra e se mandou pelo mundo. Parece que às vezes vai à casa da irmã mais velha, e depois some de novo. O fato é que, pela semelhança de comportamento, quase que o Omir poderia sentir orgulho dela. Vidão!


Minha tia morreu de câncer há uns vinte anos e meu tio e compadre, no final da vida, quase cego, morava com o filho mais velho no interior do estado. 

Omir, cujo nome sempre me fez pensar em personagens bíblicos ou do antigo Egito, morreu no mesmo dia em que eu e minha Amada comemoramos quarenta anos de casamento, mas só ficamos sabendo quando já tinha sido enterrado. Figuraça!



4 comentários:

  1. Belo texto, amigo. Marejou-me os olhos, talvez por eu estar atravessando aí umas vicissitudes atualmente. Personagens feito Omir estão, cada um com suas diferenças, por aí aos montes. Pessoas que simplesmente não encontram um lugar para si na vida e final é sempre triste e trágico. Eu tenho um pouco do Omir, tento ser "normal", e acho até que consigo enganar na maior parte do tempo, mas tenho muito medo de que alguma merda aconteça, alguma contrariedade, e eu me torne um Omir.
    Repito : BELO TEXTO!

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    1. Marreta,
      Você é um sujeito que sempre me surpreende, sabia? Primeiro, por sempre ler o que escrevo. Isso significa que dos 2,3 leitores do Blogson você é o número 1!, Segundo, por muitas vezes gostar do que leu. Isso, sim, é surpreendente, pois você é um cara que está sempre descendo porrada ou poetando da forma mais bukowskiana possível, se entende o que quero dizer. O que eu tento às vezes dizer nas entrelinhas, você divulga em outdoor. É realmente incrível.
      Quanto ao texto, ele saiu da descrição das famílias de meu pai e de minha mãe que fiz para meus filhos. Creio já ter dito que não gosto de textos biográficos chapa branca. Para mim, uma pessoa é revelada e entendida não pelo seu lado bonitinho e cheiroso. Sua dimensão humana (isso ficou meio pedante) se desvela com os casos que as famílias "de bem" tentam varrer para debaixo do tapete (podia ter escolhido um chavão melhor!).
      Finalizando, o que posso dizer é "segura a onda!". E obrigado pelos comentários sempre frequentes. Se elogiosos, melhor ainda. Valeu!

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    2. Elogiosos? Elogioso é dizer que eu escrevo da "forma mais bukowskiana possível". O resto é resto, JB.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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