Estou lendo "Maestro!" um livro sobre o rei da superação que é o pianista e maestro João Carlos Martins. Lá pelas tantas, aparece no livro a transcrição do "Testamento de Heiligenstadt", escrito pelo compositor Ludwig van Beethoven em 1802, vinte e cinco anos antes de sua morte (!).
Nunca tinha ouvido falar disso, pelo simples fato de não entender nada de música erudita. É um texto comovente e confessional, o que tem tudo a ver com o espírito do velho Blogson. Por isso, resolvi divulgá-lo aqui para reverenciar a genialidade do maestro e pianista brasileiro e do compositor alemão (deixando claro que para o João Carlos Martins "Bach é o Pelé da música clássica, Beethoven pode ser o Maradona!").
Ó
homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos
enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo.
Meu coração e meu ânimo sentiam-se desde a infância inclinados para o terno
sentimento de carinho e sempre estive disposto a realizar generosas ações;
porém considerai que, de seis anos a esta parte, vivo sujeito a triste
enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos. Iludido constantemente, na
esperança de uma melhora, fui forçado a enfrentar a realidade da rebeldia desse
mal, cuja cura, se não for de todo impossível, durará talvez anos! Nascido com
um temperamento vivo e ardente, sensível mesmo às diversões da sociedade, vi-me
obrigado a isolar-me numa vida solitária. Por vezes, quis colocar-me acima de
tudo, mas fui então duramente repelido, ao renovar a triste experiência da
minha surdez!
Como
confessar esse defeito de um sentido que devia ser, em mim, mais perfeito que
nos outros, de um sentido que, em tempos atrás, foi tão perfeito como poucos
homens dedicados à mesma arte possuíam! Não me era contudo possível dizer aos
homens: “Falai mais alto, gritai, pois eu estou surdo”. Perdoai-me se me vedes
afastar-me de vós! Minha desgraça é duplamente penosa, pois além do mais faz
com que eu seja mal julgado. Para mim, já não há encanto na reunião dos homens,
nem nas palestras elevadas, nem nos desabafos íntimos. Só a mais estrita
necessidade me arrasta à sociedade. Devo viver como um exilado. Se me acerco de
um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram
meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que
humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e
eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava!
Esses
incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas
próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!
Pareceu-me impossível deixar o mundo antes de haver produzido tudo o que eu
sentia me haver sido confiado, e assim prolonguei esta vida infeliz. Paciência
é só o que aspiro até que as parcas inclementes cortem o fio de minha triste
vida. Melhorarei, talvez, e talvez não! Mas terei coragem. Na minha idade, já
obrigado a filosofar, não é fácil, e mais penoso ainda se torna para o artista.
Meu Deus, sobre mim deita o Teu olhar! Ó homens! Se vos cair isto um dia
debaixo dos olhos, vereis que me julgaste mal! O infeliz consola-se quando
encontra uma desgraça igual à sua. Tudo fiz para merecer um lugar entre os
artistas e entre os homens de bem.
Peço-vos, meus irmãos assim que eu fechar os olhos, se o
professor Schmidt ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever a
minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois de
minha morte, se reconcilie comigo. Declaro-vos ambos herdeiros de minha pequena
fortuna. Reparti-a honestamente e ajudai-vos um ao outro. O que contra mim
fizestes, há muito, bem sabeis, já vos perdoei. A ti, Karl, agradeço as provas
que me deste ultimamente. Meu desejo é que seja a tua vida menos dura que a
minha. Recomendai a vossos filhos a virtude. Só ela poderá dar a felicidade,
não o dinheiro, digo-vos por experiência própria. Só a virtude me levantou de
minha miséria. Só a ela e à minha arte devo não ter terminado em suicídio os
meus pobres dias. Adeus e conservai-me vossa amizade.
Minha
gratidão a todos os meus amigos. Sentir-me-ei feliz debaixo da terra se ainda
vos puder valer. Recebo com felicidade a morte. Se ela vier antes que realize
tudo o que me concede minha capacidade artística, apesar do meu destino, virá
cedo demais e eu a desejaria mais tarde. Entretanto, sentir-me-ei contente pois
ela me libertará de um tormento sem fim. Venha quando quiser, e eu
corajosamente a enfrentarei.
Adeus e
não vos esqueçais inteiramente de mim na eternidade. Bem o mereço de vós, pois
muitas vezes, em vida, preocupei-me convosco, procurando dar-vos a felicidade.
Sede
felizes!
Heiligenstadt, 6 de outubro de 1802.
Ludwig van Beethoven.
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