sexta-feira, 15 de abril de 2016

REMADAS NA LAGOA

Depois de criar coragem para continuar a registrar as memórias da família de minha mãe (estou indo bem devagar), percebi que seria melhor apresentar algumas lembranças de forma independente, desvinculadas dos perfis que ainda faltam. Um desses casos é sobre um acidente aéreo que vi acontecer há mais de cinquenta anos (sou velho, meu!).


O único lugar para onde íamos durante o período de férias escolares era a casa de campo da sogra de minha tia Ci (Araci), construída no meio de um terreno imenso à beira da lagoa que deu nome ao município (Lagoa Santa). Era a época em que eu e meu irmão conseguíamos conviver e brincar mais com nossos primos ricos, os únicos que tínhamos por parte de mãe (depois, com os casamentos dos outros tios, nasceu uma porrada).

Jogávamos bentialtas (ou bente altas) no imenso gramado que existia logo depois do pomar ou ficávamos chupando o dedo enquanto eles saiam para andar de barco ou pescar com o pai e seu irmão mais novo. Como não sabíamos nadar, éramos proibidos de chegar sozinhos perto da lagoa. Como não sabíamos andar de bicicleta não podíamos acompanhar os primos e seu tio quando saiam para dar umas pedaladas.  Restava-nos ler alguma coisa ou explorar um pequeno bosque que existia no fundo do terreno.


Tio Tristano (marido de minha tia) e seu irmão Jorge (que depois casou-se com Tia Marisa, a irmã mais nova de minha mãe) gostavam de caçar e pescar. Além da traquitana utilizada pelos pescadores (varas, molinetes, anzóis, chumbadas, linhas de nylon e sei lá que mais), possuíam um barco (ou canoa) de madeira para o qual compraram um motor de popa de 2 HP, se não me engano.

Lembro-me de ter andado nesse barco um ou duas vezes no máximo, depois de meus tios terem insistido muito com minha mãe para que nos deixasse ir com eles. Apesar de ter cagado de medo de andar naquela coisa instável, foi uma experiência fascinante para um menino neurótico que não sabia nadar.

Pouco antes de anoitecer, meus tios preparavam os catueiros e saiam de barco para deixá-los em alguns lugares próximos à margem, escondidos no meio do junco abundante que crescia na parte mais rasa (não existe mais, comido que foi pelas tilápias que algum inteligente soltou na lagoa). No dia seguinte, bem cedinho, saiam de novo para recolher esses conjuntos.

Para quem não sabe, catueiro (ou catoeiro) é um pedaço de bambu mais grosso, com uns 40 cm de comprimento onde é amarrado um anzol com isca. Até onde me lembro, a linha tinha uns 50 cm e era bem resistente. Na quietude da noite, alguma traíra mais sem sorte mordia a isca com anzol e ficava pronta para virar almoço no dia seguinte.


Em Lagoa Santa está instalado um Parque de Material Aeronáutico, “responsável pela manutenção da frota da Força Aérea Brasileira”. Essa unidade da Aeronáutica, conhecida pelos moradores apenas como FAB ocupa uma área imensa, que se estende desde as margens da lagoa (onde existe um núcleo de ótimas casas para oficiais) até a estrada por onde se chega ao município (onde existe outro núcleo residencial). Essa área conta com oficinas, pista de pouso e sei lá mais o que.

Um belo dia, como dizia tio Tristano, estávamos brincando no gramado quando nossas mães nos chamaram para subir até a varanda, para ver dois aviões monomotores fazendo rasantes sobre a lagoa. Era 07 de setembro.

De onde estávamos dava para ver nitidamente o “fininho” que os aviões, roncando os motores, tiravam na superfície líquida. Estávamos empolgados com aquelas manobras quando um dos aviões encostou a ponta da asa na água e - tchiplof - deu um cavalo de pau e começou a afundar lentamente. Os adultos que estavam conosco vendo as manobras desesperaram-se, mas logo surgiram dois pontos negros boiando. Eram os tripulantes do avião, provavelmente piloto e co-piloto, que tinham conseguido sair da cabine.

Ao ver aquilo, tio Tristano e seu irmão saíram correndo para tentar salvar os militares. Apesar do barco de madeira ser deixado na lagoa durante as férias, o motor pesado era sempre retirado e levado “no muque” para dentro da casa. Então, não me lembro se levaram o motor ou se usaram apenas os remos. O que sei é que ficamos olhando meio hipnotizados para aquelas cabeças flutuantes, até que uma delas desapareceu, para desespero de minha mãe e tias. Mas logo o ponto negro reapareceu. O alívio durou pouco, pois logo sumiu de novo. Creio que repetiu essa agonia outras duas vezes até sumir definitivamente.

Meus tios conseguiram chegar até onde flutuava o sobrevivente, colocaram-no para dentro do barco e rumaram (ou remaram) para a área privativa da Aeronáutica, à margem da lagoa, onde ficam as casas dos oficiais e onde, provavelmente, já tinha gente esperando. Quando voltaram, contaram para os adultos o que tinha acontecido, etc. Não sei se o afogado não sabia nadar ou se fracassou na tentativa de desvencilhar-se de alguma coisa que o estava impedindo de flutuar.

Um ou dois dias depois um jornal trouxe a notícia do desastre e salvamento do militar, realizado pelo “oficial Fulano de Tal”. Nem uma linha ou menção aos verdadeiros responsáveis pela “operação resgate”.


Mesmo que não haja nenhuma correlação com o acidente, hoje, à beira da estrada, logo na entrada do parque da Aeronáutica, há um pedestal de concreto e, sobre ele, um avião igual ao que vi afundar-se na água, em um dia 07 de setembro.




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