Hoje eu reverencio uma pessoa de quem, até
recentemente, nunca tinha ouvido falar e de quem, provavelmente, nunca
conhecerei mais nada de sua obra. O motivo disso é simples: o autor, Frei
António das Chagas, segundo descobri no Google, nasceu em 1631 e suas obras
talvez só sejam encontradas em bibliotecas públicas (onde entrei pela última
vez no final da década de 1960).
Mas uma das poesias (um soneto) que ele
escreveu tem duas características que prezo muito: a marca da inteligência e
criatividade e o tema, que é a passagem do tempo (uma de minhas obsessões
depois dos cinquenta anos).
Por ter escrito esse poema incrivelmente bem bolado – que
trata da batalha perdida contra a passagem desse filho da puta (o tempo,
lógico) – minha reverência hoje é para Frei António das Chagas.
Acrescento ainda que encontrei na web duas versões ligeiramente diferentes para
o terceiro e para o quarto verso (prova de que a internet é a pátria da
prostituição literária). Mantive a que descobri primeiro.
A título de brincadeira, diria que esse
soneto incrível é a versão seiscentista da letra da música "Epitáfio",
gravada pelos Titãs. Divirtam-se.
Deus pede estrita conta do meu tempo,
E eu vou, do meu tempo, dar-Lhe conta;
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo foi-me dado, e não fiz conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta,
Eu que gastei sem conta, tanto tempo?
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje quero dar conta, e não tenho
tempo.
Ó vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa
conta.
Pois aqueles que, sem conta, gastam
tempo,
Quando tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo.
(Frei Antonio das Chagas )
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